Há património cultural que deve ser destruído? Há quem responda que sim a esta questão. Mesmo que em democracia e no século XXI. Regime e tempo esses que promovem uma noção cada vez mais abrangente de património cultural, nas suas vertentes material e imaterial, com um âmbito de acção cada vez mais vasto.
Não será excessivo lembrar e relembrar, sobretudo nos tempos em que vivemos, para memória presente e futura, que património cultural alicerça a construção da(s) Identidade(s) e da(s) Memória(s), realça a riqueza da diversidade, a sua compreensão e diálogo, a coesão na diferença e pela diferença, o reforço da Liberdade e da Paz, pelos caminhos que se querem cada vez mais largos do conhecimento, da sabedoria, da educação, da criatividade. O Património Cultural como instrumento e pilar de desenvolvimento sustentado e da denominada democracia cultural.
É importante compreender, mesmo sem aceitar e independentemente de respostas legais a este problema, os argumentos de quem responde ´sim` à pergunta que formulei no início, o que até faz jus ao próprio conceito actual de património cultural e ao que podemos e devemos retirar dele, nomeadamente para a prática da nossa cidadania activa e vida em comunidade. Vejamos, o que é argumentado por cá aponta para ideias que passam por: são produto de um regime ditatorial que não valorizava a liberdade e suprimia liberdades, são evocativos de períodos em que a escravatura e as desigualdades raciais eram práticas generalizadas, fruto de uma atitude colonialista, e por aí em diante. É inegável que vivemos num tempo pós-colonial (também pós-ditatorial, pelo menos em algumas partes do mundo), que há questões de equidade e justiça social a melhorar substancialmente. Dito isto, e imprecisões e até erros de análise à parte, que parecem esquecer, por exemplo, que Portugal tem pergaminhos firmados na abolição da escravatura e a Europa na defesa dos direitos humanos, importa assinalar que a destruição de património cultural é absolutamente inaceitável, sobretudo se intencional e deliberada.
É um erro grosseiro considerar desejável eliminar, apagar, banir determinados testemunhos de épocas da História, seja de Portugal, seja universal. Já nem menciono os que passam à prática, pois não vejo outra possibilidade que não seja considerá-los criminosos radicais e extremistas. Os acontecimentos históricos são os que são, ou melhor, foram os que foram, e destruir vestígios remanescentes desses períodos em nada irá alterar o sucedido no passado. Devemos considerar que a história, em rigor a historiografia, deve ser dinâmica, com interpretações actualizadas e revistas sobre o passado histórico, fundamentadas e com o rigor científico a que estão obrigadas as investigações no sector, digamos assim, sem querer entrar aqui no debate polémico se a história (historiografia) é ou não uma ciência.
Creio não ser de difícil compreensão que uma coisa é o trabalho de investigação histórica ou historiográfica, cuja disseminação deve ser cada vez mais amplificada, bem como o ensino da história mais valorizado (também mais rigoroso e objectivo). Outra, completamente diferente, é o revisionismo histórico e o apagamento de testemunhos do passado a partir de análises enviesadas, descontextualizadas, desinformadas e anacrónicas, como foi sugerido, de forma mais ou menos perceptível, nos casos conhecidos dos brasões florais da Praça do Império, das pinturas murais do salão nobre do Palácio de São Bento ou do Padrão dos Descobrimentos. Há actos de vandalismo gratuito, mas também os há com base em discordâncias sociais, políticas ou culturais.
Tal intenção extremada, felizmente, não é maioritária, hoje, na sociedade, mas há sempre o risco de tal ser potenciado no caso de ser aberto um precedente. Há que prevenir. O vandalismo não é uma raridade, como sabemos, e deve ser combatido. Apesar de já estar previsto na lei, falta mais fiscalização e aplicá-la amiúde. O vandalismo intelectual poderá ter enquadramento na liberdade de expressão e de opinião, ainda assim com limites, e ao abrigo desse mesmo quadro também se justifica denunciá-lo e desmontá-lo.
Numa outra perspectiva, podemos ter ainda em conta o debate em torno da preservação patrimonial quando em confronto com obras de expansão ou alterações urbanísticas (por vezes nada têm de melhoramento), ou mesmo fora do contexto urbano, o conflito latente entre progresso, modernização e preservação, conservação. Esta discussão, ainda que noutros moldes, é bastante anterior à da dita “descolonização”, já acontecia quando havia ainda impérios coloniais, e será mais consensual hoje, apesar de tudo, concluir que se impõe um compromisso, muitas vezes com cedências mútuas, no respeito pelas boas práticas e legislação de protecção do património cultural vigentes e do bem-estar e qualidade de vida das pessoas.
Há quem aponte como solução para aquele tipo de problemática não a destruição, mas a sua remoção e preservação (com ou sem aspas) em contexto museológico. Com efeito, as colecções museológicas estão repletas de objectos que foram removidos do seu contexto original. Se se justifica em múltiplos casos, já é mais questionável a utilização de museus como espaços de ostracismo ou de exílios políticos. Entendo como preferível a sua compreensão in situ, e não estou a falar aqui de vestígios arqueológicos. Bom, para alguns será algo arqueológico, praticamente… O passar do tempo, a idade, as idades e o distanciamento face às épocas passadas está longe de ser irrelevante.
Dois casos práticos e que por coincidência tiveram o mesmo destino, os jardins do Palácio Pimenta (núcleo-sede do Museu de Lisboa). Estou a referir-me às esculturas de Óscar Carmona, da autoria de Leopoldo de Almeida, e de A Verdade, evocativa de Eça de Queiroz, de Teixeira Lopes. A primeira, figura associada à ditadura do Estado Novo, não podia, segundo alguns mais zelosos pela Democracia, permanecer no espaço público com a visibilidade do topo norte do jardim do Campo Grande. Dirão os mesmos que está melhor como está, arrumada a um canto junto ao Pavilhão Branco. A segunda, alvo recorrente de actos de vandalismo na sua localização original no Largo Barão de Quintela, ao Chiado, foi aí acomodada, desta feita junto ao Pavilhão Preto (não tarda surgirá contestação agressiva a esta denominação…), e substituída por uma réplica em bronze. Creio que tanto num caso como no outro, apesar das motivações e natureza dos “exílios” serem distintas, urge repensar uma outra solução a aplicar.
Um aspecto a clarificar é a confusão, por vezes, gerada entre função cultural e carácter apologético de uma estátua, de um monumento ou de uma instituição. Falo tanto da existência de uma estátua de Óscar Carmona no espaço público, como na criação do Centro Interpretativo do Estado Novo/ “Museu Salazar”, Museu/Casa/Pólo/Núcleo dos Descobrimentos, ou de um equipamento cultural que aprofunde a história da república e do republicanismo, sugestão que apoiei num grupo de trabalho da Câmara Municipal de Lisboa, no qual participei enquanto historiador e museólogo, ainda que defensor, enquanto cidadão, de um regime político de monarquia parlamentar. É preciso distinguir entre projecto científico e cultural e memorial de homenagem/exaltação. Parece-me perfeitamente possível e exequível, com maturidade, com responsabilidade. O próprio Padrão dos Descobrimentos é um bom exemplo, com uma programação cultural e de exposições muito equilibrada e actual. Destaco, a título de exemplo, “Contar Áfricas!”, uma exposição-ensaio, de 2018/19, muitíssimo interessante.
Um sítio, um monumento, um espaço público monumental e até um museu (museu de si próprio), pode possuir diversas camadas referentes a várias épocas, a diferentes fases da sua construção e existência, que devem ser preservadas, assim o dita a metodologia contemporânea da conservação e do restauro. Numa igreja de raiz gótica são tão relevantes os arcos ogivais, abóbadas, rosáceas e vitrais, como a talha dourada e azulejaria do período barroco. Nem sempre foi assim. Numa praça em zona de protecção de um monumento nacional (e mundial) todas as componentes das várias fases da sua vivência contam para a história do local e para a sua conservação e restauro (não esquecer os conceitos de conservação preventiva/manutenção que servem precisamente para mitigar a necessidade de restauros).
Bom senso e conhecimento são dois elementos essenciais a uma dança harmoniosa, a bom ritmo, com os passos alinhados com as suas potencialidades, que conduzam o património cultural ao lugar certo. Moderação, razoabilidade e ponderação também. Na cidade, no espaço público, no museu e na mente de cada um de nós.
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