Percorremos as ruas desta cidade, estreitas, acanhadas, tão luminosas quanto, por vezes, sombrias. Há espaços para vivências, para sobrevivências. Para egos, nem tanto. Só muito poucos cabiam e aqui tinham lugar.
Na Rua Nova dos Mercadores, a da baixa e não a da recente freguesia do Parque das Nações em Lisboa (ainda que evocativa da primeira), ilustra e amplifica, de alguma maneira, a dimensão da diversidade da cidade, cosmopolita desde tempos ainda mais antigos. O Paço da Ribeira, que desde início de quinhentos beija o Tejo, é descoberto até por olhares distraídos ou turvos. É o crescimento da urbe junto ao rio, ao longo da sua foz.
Dois séculos e meio depois, ainda se escutavam os ecos das primeiras récitas do novo teatro de ópera, o Tejo, que suscitou a expansão de uma nova Lisboa, com as suas águas em fúria acabou por ditar parte da destruição da cidade. Água e fogo determinaram o colapso da urbe de feição medieval e a concepção de uma cidade iluminista, de ruas largas e geométricas. Um urbanismo e uma arquitectura de um pragmatismo que se impunha. Impressionou Voltaire, que escreveu o “Poema sobre o Desastre de Lisboa” (1756), e a Europa do seu tempo. Depois da tragédia as Luzes iluminaram os novos tempos e também geraram novas sombras.
Não desejo que uma catástrofe seja vista como algo luminoso, mas devemos ter presente que uma situação com aquela natureza e escala acabou por determinar, com engenho e arte, novas oportunidades e dinâmicas. A História está recheada de linhas de ruptura. Também o está de continuidades, não isentas de tensão entre ambas. Aliás, a História é muito feita dessa tensão, muita da sua essência assenta nos avanços e recuos desse processo. A cidade de Lisboa não é excepção à História, apesar da sua singularidade.
Assim sucede com múltiplas instituições. É tão redutor quanto erróneo circunscrever a Igreja Católica à Inquisição, quanto o é em relação ao movimento que se convencionou chamar de Descobrimentos (evitei o termo epopeia para não dar margem às críticas de que estou a romancear aquela época) e à escravatura. Ambas são realidades históricas, inclusivamente a escravatura, infelizmente, ainda tem formas contemporâneas, mas as instituições ou movimentos não se esgotam nesses flagelos.
Urge uma apreciação abrangente, ponderada e informada, que não veja uma catástrofe natural como um castigo divino, nem uma dinâmica universal, a primeira grande globalização, como algo essencialmente nocivo e opressor. Deixemo-nos, de uma vez por todas, de maniqueísmos. A realidade, passada e presente, é mais complexa e plural. Não assumir isso é alinhar, de forma consciente ou inconsciente, em populismos e radicalismos. Temos de reconhecer, sob a forma de pergunta, quais foram os tempos que não o foram de fanatismo ou radicalismo, seja político, religioso, antropológico ou social? Com efeito é muito difícil, para não dizer impossível, identificar alguma época que seja eminentemente moderada e pacífica. Ambicionamos que o seja, mas até ver não aconteceu. Continuaremos a remar (ou velejar se preferirem) nesse sentido.
Para isso o valor, significado e papel do Património Cultural, na sua noção atual e abrangente, é fundamental. A construção desta nova dimensão é precisamente o inverso da realidade histórica constatada. O conciliar, tendencialmente preferencial, de épocas, estilos, vestígios (materiais e imateriais) é, entre outras coisas, uma excelente metáfora da vivência da herança cultural. O diálogo entre testemunhos de várias épocas, que dão unidade e consistência a um monumento ou conjunto por exemplo, ilustra bem o que representa em termos de coesão e valorização da diferença e do diverso, de pontes entre passado e presente. Falar de Património Cultural é falar de Nós, de Nós e do Outro. Do ser humano, de seres humanos.
Não é viável conservar tudo, como não é admissível tolerar tudo. Não quero cair nas já banalizadas “linhas vermelhas”, mas certo é que devem existir fronteiras, mesmo que ténues por vezes. Se o bom senso e a razoabilidade são qualificações subjectivas, os Direitos Humanos são bem claros. Salvaguardar o Património Cultural é respeitar o direito à Liberdade, à Equidade, à Diversidade Cultural, ao acesso à Cultura e à Educação, à Identidade e à Memória. O Património Cultural foi (ainda é) alvo de manipulações políticas, sobretudo em regimes ditatoriais, mas também em democracias. Como é conhecido, Winston Churchill afirmou que este “é o pior dos regimes, à excepção de todos os outros". Não há regimes perfeitos, mas há uns mais imperfeitos do que outros. Adiante.
Refiro, de passagem, o exemplo do trabalho desenvolvido pelo Museu de Lisboa https://www.museudelisboa.pt/pt, mas procurarei focar a atenção no Padrão dos Descobrimentos. O Museu de Lisboa através de exposições temporárias como “Convivência(s). Lisboa Plural. 1147-1910” (2019) ou dos seus percursos temáticos sobre a presença africana ou a escravatura, ou ainda sobre a Lisboa muçulmana ou judaica tem contribuído para essa missão cultural.
O Padrão dos Descobrimentos https://padraodosdescobrimentos.pt, por seu turno, também de gestão municipal, tem conseguido afirmar-se, apesar dos ataques verbais e ações de vandalismo de que foi sendo alvo, enquanto espaço eminentemente cultural. Para além de um monumento (em processo de classificação) e de disponibilizar um miradouro fantástico sobre a cidade e o rio tem, e bem, apostado numa linha de exposições temporárias que dão corpo a uma missão cultural que passa por, desde logo, e dada a sua conceção e construção ter origem no Estado Novo, desmistificar com desassombro esse período da História de Portugal, mas também de outros, nomeadamente a época dos Descobrimentos, e os vários períodos coloniais que daí decorreram.
A juntar à desmistificação e ao desassombro uma abordagem rigorosa e científica, que é como os temas de historiografia devem ser tratados, podendo assim ter uma utilidade pedagógica, didática e informativa, que suscite reflexão, debate, uma cidadania participativa e mitigue a desinformação, os radicalismos, o populismo, o racismo, a xenofobia, a segregação e promova a coesão, a inclusão e o desenvolvimento sustentável.
Travar este combate, pela paz e em paz, uma paz social no imediato, é um imperativo de espaços culturais como o Padrão dos Descobrimentos. Só pela Cultura e por iniciativas de natureza cultural poderá não ser suficiente para um caminho de sucesso, mas é imprescindível para o sucesso que o caminho se faça também pela Cultura. Não poderá ser de outra forma. Assim queiramos e saibamos construir uma Democracia Cultural e uma sociedade civilizada. Com liberdade feliz e felicidade livre.
Padrão dos Descobrimentos. Créditos- André de Soure Dores @andredesoure
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