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Gestão delicada e Gestão com delicadeza… do Património Cultural



Lembro-me de uma coisa que um professor no liceu, na década de 60 do século XX, nos contava nas aulas a propósito das contradições da sociedade romana. Dizia-nos que as lutas de morte que animavam as arenas monumentais que os romanos construíam nas cidades mostravam desprezo pela vida dos homens, mas que, em contrapartida, os cavalos usados pelo exército romano, a que chamavam os “veterinus”, quando ficavam velhos eram recolhidos para serem acompanhados. Quem tratava deles eram funcionários chamados veterinarii, assim chamados porque cuidavam com esmero os cavalos velhos, derivando, eventualmente, de vetus.


Esse professor propunha, então, que refletíssemos, como estudantes adolescentes, sobre a ideia de sermos delicados para com os mais velhos, reconhecendo que tinham trabalhado e contribuído para a sociedade.

Recordei esta historieta, agora, muitas décadas depois de a ouvir, a propósito do uso de delicadeza numa situação que ocorreu recentemente em instituição pública do património cultural.


Sabemos que a gestão do património cultural, material e imaterial, é tarefa “delicada”, sinónimo de minuciosa. Sabemos que exige medidas aplicadas caso a caso, não só com minúcia, mas também com especialidade técnica crescente, rigorosa, cautelosa, precavida. É a exigida, e apregoada, gestão delicada.


Mas, no título deste texto, além da palavra “delicada” também uso a noção de “delicadeza”, assumida como sinónimo de cortesia, cuidado, afabilidade, esmero, qualidade de quem é delicado, de quem tem atenção minuciosa para com os outros.


Recordando a forma como Humberto Eco começou um discurso em 2004, na Universidade de Bolonha, a propósito da “retórica da prevaricação”1, “não sei se o que vou dizer serve para alguma coisa, mas vou continuar a falar em sinal de respeito aos que percebem…


Recentemente, de visita a monumentos e sítios reconhecidos pela UNESCO, aproximei-me da receção do museu de uma grande catedral na Europa. Pedi o bilhete para ingresso e, delicadamente, foi-me dito que tinha aspeto de ter mais de 65 anos e, por isso, tinha direito a redução de custo. Agradeci a cortesia, o esmero. Tudo aconteceu sem qualquer pergunta ou comentário da minha parte.


Curiosamente, semelhante delicadeza tinha acontecido, numa bilheteira do caminho de ferro de França, quando me entregaram o bilhete com redução sem eu pedir. Foram, obviamente, corteses e delicados.


Recordei-me, então, do que me tinha acontecido no Palácio Nacional da Ajuda, Lisboa, quando fui visitar a sua nova ala, denominada “poente”.


Nas plataformas oficiais das redes digitais tinha lido que “O Palácio Nacional da Ajuda – Museu do Tesouro Real é o cenário condigno para a apresentação de um acervo único e com particular significado para o país com uma história de nove séculos.” Um texto irresistível para qualquer cidadão português.


Lá fui rever o Palácio da Ajuda.


Na receção com acesso pelas “novas portas” pedi o bilhete e fiz referência ao facto de ter o cartão de antigo combatente que, ao abrigo da lei, garante a gratuitidade de entrada nos museus e monumentos nacionais. A menina da bilheteira disse-me que “ali não era válido, só no Palácio que é na outra porta”. Não comentei, paguei, entrei, visitei, fruí, e saí por outra porta nova. Reconheço que aquelas são portas novas, com tudo que isso significa. Mas ficou-me a dúvida se estaria, ou não, no Palácio da Ajuda.


Não tive dúvidas. Estava. Milhares de vezes, profissionalmente, ao longo de décadas, estive no Palácio da Ajuda, embora, reconheça, entrei sempre por “portas antigas”.


Estou certo que a menina que estava na receção cumpriu as instruções que tinha recebido. Involuntariamente, em nome de uma instituição, cometeu uma indelicadeza para com um cidadão português a quem, como a alguns outros, talvez ainda muitos, por reconhecimento cívico, disseram, julgo, quererem formalizar, por legislação nacional recente, específica, o incentivo à visitação regular de museus e de monumentos sob gestão do Estado, presumindo-se que a valorização do Património Nacional foi assumida na dimensão da cidadania reconhecida.


Haverá, certamente, uma justificação administrativa para que aquele monumento tenha, agora, portas com estatutos diferentes.


Curiosamente, nunca fui defensor da gratuitidade plena dos acessos a bens culturais, reconhecendo que tal induz, em muita gente, a noção de vulgaridade desqualificante. Em contrapartida, reconheço que o pagamento de bilhete, mesmo que reduzido, pode ser pedagógico. Por tais razões, o estatuto especialmente atribuído, por reconhecimento cívico, a alguns cidadãos nacionais, é tanto mais significante, valorativo, simbólico.


Todos sabemos que a construção das identidades é complexa, permanente, obrigatoriamente persistente, e não se consegue com processos que se desenrolem no isolamento de um espaço determinado e separado do acontecido em outros locais.


As identidades nacionais têm um início, uma história, mesmo que não a possamos datar de acordo com uma cronologia precisa, salientou José Manuel Sobral. Procuramos caracterizar momentos e conjunturas da formação de Portugal e dos portugueses e apontar alguns dos meios pelos quais esta identidade nacional se tem perpetuado, inclusivamente através de metamorfoses.


Recordei José Tolentino Mendonça que em 25 de abril de 2020 salientou: “O dogmatismo com que hoje encaramos a produtividade, a eficiência e o consumo tornou-nos uma sociedade desligada de dimensões essenciais. Nela, os velhos perderam o seu papel social, pois deixaram de valorizar o depósito de conhecimento e experiência que representam, e passámos a apostar todas as nossas fichas num ideia de progresso baseada na mudança contínua, sem freios nem memória.


Reconheçamos que uma gestão delicada, porque técnica, cientifica e metodologicamente exigente, tem grandes implicações nos orçamentos institucionais. Em contrapartida, a delicadeza na gestão não orça muito mais, talvez só exija algum acréscimo de esmero. Afinal, o meu professor no liceu tinha razão.

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O autor utiliza o Acordo Ortográfico.


Lino Tavares Dias

Setembro 2023


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