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EU no musEU – acessibilidade integrada com pessoas com demência e seus cuidadores


Virgínia Gomes e Isabel Santana*



Motivação e inspiração


Tornar acessível a oferta cultural de um museu é premissa essencial numa sociedade que se quer global. No caso dos museus portugueses, verifica-se uma mudança de paradigma que pode vir a tornar o Museu no aprendiz dos seus públicos e contextos, um Museu dialogante, ouvinte e atuante na formação de todos e na informação com todos: equipas, coleções, públicos e territórios. Lentamente, num percurso com pouco mais de uma década, os profissionais dos museus vão tomando consciência de que a acessibilidade física não chega[1] para tornar a ação de um museu interventiva e transformadora (no sentido de experiências significativas) com a comunidade que o envolve.


O Coco-do-mar, do Museu da Ciência da UC. EU no musEU, sessão 76, julho de 2019 © Marisa Martins, MNMC

No que respeita ao público sénior com necessidades especiais, nomeadamente com Perturbações Neuro Cognitivas (PNC)[2] do tipo Doença de Alzheimer, comumente designadas por demência, a preocupação de tornar acessível a abordagem da obra de arte passa pelo conhecimento prévio das caraterísticas específicas dessas doenças degenerativas. Deste modo, quando em 2011 o Museu Nacional de Machado de Castro (MNMC) foi abordado por uma cuidadora informal de uma pessoa com demência, no sentido de replicar o programa Meet me, que o Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova Iorque desenvolvia desde 2007 (e até 2014), associou de imediato a Delegação do Centro da Alzheimer Portugal – Associação Portuguesa de Familiares e Amigos de Doentes de Alzheimer (APFADA) de Pombal e a direção geral da Alzheimer Portugal [3], a partir de 2015.

Parcerias e replicação


Estabelecida a parceria, foi encontrado o nome: sendo a obra de arte e espaços do museu, e a sua matriz identitária, o instrumento de comunicação e diálogo com as histórias de vida pessoais, o projeto passou a chamar-se EU no musEU. O nome e o logotipo significam que a pessoa com demência (daqui em diante designada por participante), se revê, a si e às suas memórias, no Museu; daí as duas primeiras e as duas últimas letras surgirem em maiúscula, para reforçar a importância dada a cada pessoa e à sua circunstância.


Com o decorrer dos anos outras entidades se associaram e, atualmente, o EU no musEU conta com os seguintes parceiros ao nível regional: Associação APOJOVI/APOSENIOR, AMIC - Liga de Amigos do Museu Nacional de Machado de Castro, Serviço de Neurologia do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC), Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Coimbra (FPCEUC), Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra (CNC.IBILI, UC).


Em 2018, sob protocolo assinado com o MNMC e a Direção Geral da APFADA, o Museu Tesouro da Misericórdia de Viseu (MTMV) e o Museu Nacional Grão Vasco (MNGV), unindo equipas e concebendo uma programação conjunta, replicaram o projeto, com o EU no musEU em Viseu[4], que já realizou 29 sessões.


Conto de Natal, de Miguel Torga. EU no musEU em Viseu 7, janeiro de 2019 © Alexandra Pessoa, MNGV

Natureza e objetivos-metas


O EU no musEU desenvolve as suas sessões mensais com pessoas com défice cognitivo no espectro da Doença de Alzheimer e seus cuidadores. É um projeto inovador em Portugal por trabalhar, em contexto museológico, com pessoas com demência e seus cuidadores, em grupos distintos, segundo as suas necessidades cognitivas, emocionais e sociais[5].


Desde o seu início, a 9 de novembro de 2011, o EU no musEU divergiu do modelo preconizado pelo MoMA por a realidade portuguesa ser, ao nível das políticas de saúde e de assistência social diversa da americana, e por isso desfavorável ao cuidador informal de pessoa com demência em Portugal, resultando na inexistência de apoios sociais e assistenciais, conduzindo a situações de grande vulnerabilidade emocional e de autoexclusão social. Nessa perspetiva de o incluir também e de lhe oferecer um espaço/tempo de socialização, de catarse e de descontração, de aprendizagem entre pares, foi desenhado um programa adaptado a cada um dos grupos (o dos participantes e o dos cuidadores informais) que, uma vez por mês, se reuniam em simultâneo e separadamente no espaço do museu.


Dança, com cuidadores informais – EU no musEU em Viseu 2, junho de 2018 © Alexandra Pessoa, MNGV

No seu âmbito, como projeto de investigação-ação, privilegia como meio de comunicação a obra de arte, em contexto museológico, com três objetivos fundamentais / metas: a) desenvolver a estimulação cognitiva para promover o bem-estar e a melhoria da qualidade de vida de pessoas com situações no espectro da Doença de Alzheimer; b) promover a educação não formal dos seus cuidadores, através da fruição de obras de arte, de conteúdos científicos e do enriquecimento cultural, com vista ao envelhecimento ativo e saudável; c) promover a cidadania e a inclusão social de ambos[6].


Metodologia


Recorrendo a uma metodologia centrada na pessoa, as abordagens visam a estimulação cognitiva e a cultural tendo como base a apreciação e a reflexão de/sobre obras de arte, espaços do Museu, conteúdos científicos e etnográficos ou antropológicos em diálogo com histórias de vida, ambos complementados com intervenções de outras artes, nomeadamente teatro, histórias, música, contos, yoga, biodanza e mindfulness. Conta ainda com sessões asseguradas por especialistas externos e exposições temáticas, nomeadamente a ‘Desenhar o Tempo – o Teste do Desenho do Relógio’, com peças recriadas pela artista plástica Zizi Ramires, inaugurada no MNMC em 2016[7] e reposta em Viseu e em Estarreja, em 2018 e em 2019.


A flexibilidade metodológica do programa está patente no sucesso da replicação em Viseu: o EU no musEU adequou as suas estratégias e rotinas a contextos e realidades locais diferentes, a outros conteúdos de museus de acolhimento e a diverso nível médio de escolaridade dos participantes. A motivação, interesse e retenção dos participantes e dos seus cuidadores é relevante.


A figura do cuidador formal em sessão e uma equipa multidisciplinar


Para que o cuidador informal estivesse descontraído e confiante num grupo distinto do da pessoa de quem cuida, foi criada a figura do ‘cuidador formal em sessão’ – voluntários que acompanham cada participante e providenciam a sua segurança e bem-estar geral. Durante a sessão interagem com o participante e garantem que serão ouvidos, se tiverem vontade de participar ou de esclarecer alguma dúvida.


Cuidadora formal e participante – EU no musEU, sessão 70, janeiro de 2019 | MNMC | © Carina Esteves (Voluntária)

Os voluntários do programa são profissionais no ativo ou aposentados de diferentes áreas do conhecimento, predominantemente da saúde, ou da educação, contribuindo com a sua experiência e cultura para o enriquecimento dos diálogos. Anualmente, o programa conta com 20 a 25 voluntários disponíveis para participar, entre ´cuidadores formais em sessão’ e outras funções de apoio e preparação das atividades. A todos é assegurada formação neste âmbito.


Também os dinamizadores – num total de sete em permanência, durante as sessões presenciais – são historiadores, historiadores da arte, museólogos, contadores de histórias, psicólogos, cientistas, com várias competências e interesses.


Em tempo de pandemia


Em 2020, com a iminência da pandemia por Covid-19 – que coloca em risco maior os idosos – e, perante o confinamento obrigatório, a equipa sentiu que o isolamento social deste público aumentaria até níveis antes não vividos. Era urgente assegurar as sessões. Impunha-se uma estratégia de proximidade. Esta urgência foi também sentida pela equipa de Viseu. Em conjunto, foi delineada uma estratégia, implementada a partir da Páscoa de 2020. Apesar de ser notória a dificuldade da maioria dos cuidadores na utilização dos meios digitais, a informação e a motivação ajudaram a superar as dificuldades e mobilizaram inclusive a família.


Assim, em abril de 2020 os participantes do EU no musEU e os seus cuidadores informais receberam em Coimbra a sessão 83 e em Viseu a sessão 20, ambas em formato digital, e com estrutura interna diversa, adequadas a cada contexto geográfico e social.


A equipa, que nas sessões presenciais estava dividida em três dinamizadores para o grupo dos participantes e quatro para o grupo dos cuidadores, agrupou-se e procurou estratégias de continuidade e de comunicação.[8]


As sessões tomaram outro ritmo, sem esquecer o ‘acolhimento’ e o ‘até breve!’ (no início e no final da sessão), que constituem momentos fundamentais deste novo formato, em que o participante revê a pessoa que dele cuidava durante as sessões presenciais. A falta do afeto e da escuta presencial foram durante este ano compensadas por uma gradual participação de cuidadores e pessoas com demência nos filmes das sessões online do EU no musEU; com o acompanhamento telefónico mensal (entre sessões), e mais ainda, pela criação, no âmbito de estágio em Psicologia Clínica – Psicogerontologia, de sessões mensais de música, via ZoomHá música no EU no musEU –, que congregam as equipas, participantes e cuidadores de Coimbra e Viseu. São momentos musicais de puro e franco reencontro, de convívio e de catarse, embalados pela música e exercícios de relaxamento. Por seu turno, a equipa de Viseu organizou em março a primeira reunião pós sessão, com os seus participantes e cuidadores, através da plataforma Zoom.


No entanto, nada substitui o ‘calor humano’ e o espaço do museu que todos reclamam. Talvez por isso e por este programa ser um espaço/tempo de recuperação de memórias, essencialmente emocionais, das visualizações dos links das sessões alojados em canal privado na internet, destacam-se ao nível do número de visualizações, os ‘Olás’ e os ‘Até breve!’, numa retoma da memória do ‘acolhimento’ em conjunto no início das sessões presenciais.


Felizmente, em tempo de pandemia, a frequência do programa aumentou [cf. Quadro 1] chegando por via digital a quem já não tinha mobilidade, disponibilidade ou proximidade para estar presente. A família assiste junta e frui o reencontro com a arte e a ciência. Uma reflexão se impõe: este museu desmaterializado perdura, mas a memória é mais intensa para quem já o viveu entre portas.

Quadro 1

Os resultados


O interesse na prossecução do programa tem sido reafirmado anualmente pela elevada retenção de participantes (60 %) e o seu impacto tem sido objetivado por avaliações formais dirigidas à esfera emocional e à qualidade de vida dos utentes. Salienta-se que têm sido os cuidadores os principais incentivadores da sua continuidade e da implementação de intervenções cada vez mais criativas.


"Mindfulness", Sessão Conjunta – EU no musEU, sessão 55, julho de 2017 | MNMC | © Rita Sousa (Voluntária)

O reconhecimento


Dizia uma estagiária do EU no musEU: “É estranho os museus serem premiados por cumprir a sua obrigação, a sua responsabilidade social!”

O trabalho realizado por uma equipa unida, empenhada, com o objetivo comum de ouvir e atender a todos, independentemente da sua condição, sente encorajamento, também, nesse reconhecimento público. O EU no musEU é referido como boa prática em manuais de associações e em relatórios governamentais de direitos humanos, tendo sido distinguido com diversos prémios na área da acessibilidade e do envelhecimento.[9]


Contudo, o maior reconhecimento surgiu quando os cuidadores informais passaram a encontrar-se socialmente, fora das sessões do Museu, criando uma nova rede de apoio.

Considerando que dispõem de poucas respostas sociais e assistenciais, e por isso dão maior valor a estas parcas iniciativas, o reconhecimento maior provém da apreciação dos cuidadores informais, como testemunha a mensagem de uma cuidadora informal no final de uma sessão online:


Deixo de ter palavras para agradecer e dizer do prazer de aprender tanto com toda esta "nossa" gente!


 

[1] Além do físico: barreiras à participação cultural, Relatório ‘Jornadas 2017’, Acesso Cultura, 2018; in https://acessocultura.org/relatorio-alem-do-fisico/


[2] A respeito das Perturbações Neuro Cognitivas e da sua incidência em Portugal, veja-se Novos desafios comunicacionais junto de públicos com Perturbações Neuro Cognitivas em Museus, Gomes, Virgínia (dissertação de mestrado), ESECS-IPLeiria, 2016 pp. 9-10, online em https://iconline.ipleiria.pt/handle/10400.8/2369?locale=en



[5] EU no musEU, Filme de divulgação cortesia ESECTV, julho 2018: https://www.youtube.com/watch?v=2et0s2lJJKg&feature=youtu.be


[6] EU no musEU – reportagem ESECTV, 9-07-2019: https://www.youtube.com/watch?v=Mf3Fm_ulMo8;

[7] ‘Desenhar o Tempo – o Teste do Desenho do Relógio’, ESECTV, outubro, 2016: https://youtu.be/jZ7QAcxGGX0


[8] V. vídeo EU no musEU – excertos de sessões online, março 2021, in https://youtu.be/9RtZ3mGzccw


[9] Referenciado no manual de Boas Práticas da ANACED, desde 2012 (https://anacedarte.wixsite.com/anaced/boas-praticas-artisticas-e-cul), p. 134; como boa prática cultural, no Relatório Anual da Comissão Nacional para os Direitos Humanos, 2017, p.52 (https://direitoshumanos.mne.gov.pt/images/documentacao/atividades/cndh-relatorio-atividades-2017.pdf); Menção Honrosa do Prémio Acesso Cultura 2015, pela abordagem inovadora em Portugal; Prémio na categoria Vida+, 2018, como Boa Prática para o Envelhecimento Ativo e Saudável na Região Centro, atribuído pela Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro (CCDRC) em colaboração com o consórcio Ageing@coimbra; Prémio Acesso Cultura, 2019, para a acessibilidade integrada, que distinguiu o MNMC, incluindo este programa.


Outras referências:


Gomes, Virgínia (2017) – EU no musEU, para pessoas com perturbações neuro cognitivas e seus cuidadores, in “Barómetro Social”, 22 jan 2017:

National Museums of Liverpool (2012). House of Memories: Evaluation 2012:

Manual de Boas Práticas da ANACED – Associação Nacional de Arte e Criatividade de e para Pessoas com Deficiência; EU no musEU referenciado desde 2012

EU no musEU referenciado como Boa Prática Cultural no Relatório Anual da Comissão Nacional para os Direitos Humanos, 2017

 

Virgínia Gomes é Coordenadora Técnica do programa EU no musEU. Coordena projectos de inclusão no Museu Nacional de Machado de Castro (MNMC), em Coimbra; técnica superior responsável pelas colecções de Pintura, Desenho e Gravura do MNMC. Mestre em Educação Especial-Domínio Cognitivo-Motor, com dissertação em Comunicação Aumentativa junto de públicos com demência.

Isabel Santana é Coordenadora Científica do programa EU no musEU. Neurologista do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC), especializada na área de envelhecimento; professora agregada e investigadora do CNC.IBILI, da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra; membro da Comissão Científica da Alzheimer Portugal (Associação Portuguesa de Familiares e Amigos de Doentes de Alzheimer – APFADA).


As autoras utilizam o Acordo Ortográfico.


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