Ao longo dos vintes anos que levo já como conservador-restaurador cometi vários erros durante a minha prática profissional. Erros que se traduziram, em alguns casos, em danos para o património, e que comprometeram, nesses momentos, aquilo que é o propósito e fundamento desta profissão: a preservação da integridade física e dos valores históricos e culturais dos bens patrimoniais. Mas não ficaram por aí. Cometi erros de comunicação com proprietários (utilizando uma linguagem demasiado técnica e pouco acessível para quem não está tão familiarizado com a área), não os envolvi nos processos de decisão (quando a propriedade e os interesses do objeto assim o exigiam), cometi erros de orçamentação (subavaliando custos), na definição de prazos de execução, erros relacionados com a interpretação de resultados de análises, e aconteceu, algumas vezes, não entregar aos proprietários dos bens aquele documento vital para compreender o trabalho de qualquer conservador-restaurador, mas que tantas vezes me custa a produzir: o relatório sobre a intervenção realizada.
Se por um lado foram momentos que vivi com angústia (maior ou menor, dependendo da dimensão do erro), por outro foram despertando em mim o interesse por este tema, e em perceber como é discutido e estudado dentro da conservação e restauro, e se existe uma prática de partilha destas situações entre os conservadores-restauradores.
Enquanto fenómeno, o erro surge como elemento estruturante da natureza humana. Mil e duzentos anos antes de Descartes ter escrito “penso logo existo”, Santo Agostinho havia já avançado com uma definição ontológica distinta: “fallor ergo sun”. Erro logo existo. A bibliografia sobre a temática é extensa, e no âmbito da psicologia, neurociência e sociologia abundam os estudos sobre o tema. Estudos que procuram identificar contextos, padrões, que procuram categorizar os erros, que procuram perceber a influência dos fatores externos (organizacionais) e internos (decorrentes das limitações e enviesamentos dos seres humanos), e que convergem, de uma forma generalizada, em algumas ideias-chave: o erro é intrínseco à natureza humana; é parte integrante do processo de aprendizagem e crescimento pessoal; existem condições que os exponenciam; e vivemos numa época hostil ao erro e à assunção do mesmo – que valoriza, predominantemente, o sucesso e a eficácia.
Se nessas áreas a bibliografia sobre o tema é abundante, na área da conservação e restauro é praticamente inexistente. Centrados na temática e em situações de erro vividas em intervenções de conservação e restauro, identifiquei quatro artigos, (Isabelle Brajer; Michele Marincola; Ayesha Fuentesa& Geneva Griswold; Anthony Sigel), publicados entre 2009 e 2016. Se deslocar o foco para a realidade da conservação e restauro no nosso país, o cenário torna-se ainda mais expressivo, não existindo qualquer artigo ou intervenção sobre o tema (os artigos são centrados, sobretudo, em estudos sobre património, e em metodologias e soluções técnicas no âmbito das intervenções). É assim uma realidade que contrasta com várias outras profissões, onde facilmente se conclui que o tema não tem qualquer centralidade, e que a profissão não integra ainda mecanismos de reflexão sobre procedimentos e práticas, como parte do seu processo de crescimento.
Se os conservadores-restauradores erram, tal como os restantes profissionais, e se os erros que cometem podem ter consequências significativas para bens que assumem valor para a história de uma dada pessoa, para uma comunidade, um país, ou a humanidade no seu todo, como se explica este silêncio sobre o erro associado à sua prática profissional?
Alguns dos artigos referenciados anteriormente apontam algumas razões para esta realidade, sendo possível associar outras oriundos de estudos de áreas do conhecimento distintas. De uma forma sumária, e começando por uma razão mais estrutural, o processo de assumir que errámos é difícil porque é emocionalmente exigente. Este é um aspeto comum a todos os seres humanos. Os erros perturbam-nos porque nos fazem duvidar de nós, das nossas capacidades, e mexem com algo muito presente no nosso inconsciente: a importância do vínculo. De sermos aceites e validados pelos que nos são próximos, pelos nossos pares e por todos aqueles que são importantes para nós. É por isso, que Kathryn Schulz afirma no seu livro «Por Que Erramos? O Lado Positivo de Assumirmos o Erro», que “negar os nossos erros é, às vezes, uma reação compreensível, que merece simpatia em vez de censura. A negação não é, afinal, uma reação aos factos. É uma reação aos sentimentos que esses factos evocam – e às vezes esses sentimentos são simplesmente demais para se conseguir suportar”.
Entrando nos aspetos relacionados com a profissão, Michele Marincola e Anthony Sigel, atribuem ao facto da conservação e restauro ser uma profissão recente, um fator importante, para explicar o fenómeno – a primeira definição da profissão foi feita, apenas, em 1984. Muitas das nossas metodologias e materiais são relativamente recentes, não existindo ainda, em muitos casos, o tempo necessário para a análise crítica relativamente ao impacto assumido no património, numa perspetiva de médio-longo prazo. A par disso, existe ainda a necessidade de integrar muito do saber empírico decorrente da práxis profissional, no corpus científico e metodológico da Conservação e Restauro, criando-se uma prática de reflexão (através do processo de escrita ou comunicações) por parte dos conservadores-restauradores, que está ainda pouco presente.
Outro aspeto igualmente relevante nesse âmbito, prende-se com a própria história da profissão, e dos seus antecedentes. Na procura de cortar com um passado onde as intervenções eram asseguradas por figuras como os “pintores-restauradores”, “escultores-restauradores”, “encadernadores-restauradores” ou outros que com uma formação e vocação na área dos ofícios e belas artes faziam do restauro um prolongamento dos processos de produção artística, ancorámos a nossa prática em torno de conceitos como “ciência” e “especialização”, projetando a ideia que, em oposição àqueles tempos, a conservação e restauro que se realiza hoje é estruturada em torno de conceitos rigorosos e objetivos, completamente à prova de erro (Virgílio Ferreira dizia que “a ciência é o erro à espera de vez…”). Este aspeto produziu nos seus profissionais uma exigência e expectativa de perfeição, que não só retirou espaço para a discussão e exposição do erro, como fez com que passassem a olhar para este fenómeno como uma falha individual, uma manifestação de incompetência, e não como parte integrante (e inevitável) da sua prática profissional, e do processo evolutivo da área.
Igualmente importante é o contexto e as condições em que se desenvolve a profissão.
Ao assumirem a responsabilidade de conservarem preventivamente, ou intervirem diretamente em património (conservação curativa e restauro), que simbolicamente remete para valores relacionados com identidade, memória, autenticidade e/ou raridade, a perspetiva dos conservadores-restauradores assumirem danos ou perdas nestes elementos torna-se intimidatório, pelas consequências daí decorrentes para os afetados pelo(s) erro(s) cometido(s), e para os próprios. Se juntarmos a isso o facto de muita da nossa prática profissional acontecer em/ para instituições que têm como vocação a preservação desse mesmo património (museus, bibliotecas, arquivos, palácios…), a assunção do erro significa uma falha destas instituições perante a sociedade na prossecução de uma das mais importantes missões que lhes foi atribuída, tornando o processo duplamente intimidatório, e cujos danos reputacionais são óbvios para as partes envolvidas.
Ainda relacionado com as condições em que se desenvolve a profissão, o elevado peso assumido pelos prestadores de serviço e empresas na composição do mercado de trabalho, parece-me ser outro fator condicionante. Se pensarmos que estamos perante prestadores de serviços (em ambos os casos), perante uma realidade caracterizada pela precariedade laboral, e que o principal ativo destes é a fiabilidade e confiança que inspiram, percebemos que qualquer erro ou situação que possam colocar em causa esses valores, poderão significar uma redução significativa, ou perda total da respetiva atividade.
Destaco um último aspeto, e que se prende com a perceção pública do erro nesta área, e da enorme confusão existente nos dias de hoje, em torno do mesmo. Desde a famigerada intervenção realizada em 2012 na pintura “Ecce Homo” de Borja, por Cecilia Giménez, que se avolumaram noticias ou partilhas nas redes sociais sobre situações semelhantes, descritas como “maus restauros” ou “restauros desastrosos”. São conteúdos que abordam, muitas vezes, estas situações numa lógica de escárnio, humorística, de quase entretenimento, sem que, na maior parte das vezes refiram o mais importante: as consequências da destruição que estas intervenções comportam para o património e para os lesados, e que o que está em causa não é nem conservação, nem restauro. São atos negligentes perpetrados por pessoas que, sem ter formação adequada para o efeito, se propuseram realizar procedimentos técnicos da exclusiva responsabilidade de um profissional altamente qualificado, que é o conservador-restaurador.
Conservadores-restauradores fazem maus restauros. Maus restauros resultam de erros cometidos. O que situações como a referida configuram, são realidades completamente distintas, que devem ser tratadas como tal (algumas delas são inclusive, criminalmente puníveis), e produzindo o necessário esclarecimento sobre o seu significado, à luz de uma pedagogia cívica no âmbito da educação patrimonial que devia ser feita e que, salvo raras exceções, não é (e aqui penso, em particular, na comunicação social).
Este contexto fez com que se instalasse no subconsciente dos conservadores-restauradores a “síndrome D. Cecília”, onde o medo de sermos ridicularizados e colocados no mesmo patamar, nos faz viver as situações de erro com uma enorme vergonha e no mais completo silêncio. E teve também uma outra consequência perversa (e paradoxal) na relação entre pares, dentro da conservação e restauro: nós próprios, muitas vezes, passámos a julgar os erros dos nossos e das nossas colegas, aplicando a mesma matriz, e usando da mesma lógica de escárnio, em vez de adotarmos a necessária compreensão e reflexão sobre o fenómeno, como se exigia.
Aqui chegados coloca-se, inevitavelmente, a questão: o que devíamos então fazer, para mudar esta realidade? A resposta parece-me simples, mas cuja concretização requer tempo, maturidade, e vários envolvidos: falarmos sobre os erros que cometemos!
Deixo algumas sugestões (parte inspirada em propostas produzidas pelos autores referidos anteriormente), que tocam em dimensões específicas do problema, e orientadas para contextos concretos.
Começando pelos profissionais, e sendo certo que escasseiam os artigos e iniciativas nesta área, o grupo constituído no seio do American Institute for Conservation em 2017 deve servir como referência, assim como algumas das atividades empreendidas pelo mesmo, desde então. Resultando de um webinar realizado em 2017 e promovido por uma rede de profissionais dos Estados Unidos (Emerging Conservation Professionals Network), subordinado ao tema «Picking up the Pieces: Accepting, Preventing, and Learning from Mistakes», assume-se como a única realidade existente no seio de uma associação profissional, que se propõe olhar para os erros na profissão, de uma forma construtiva. Destacam-se, sem dúvida, duas iniciativas realizadas desde então, e que procuram manter um carácter regular («A Failure Shared is not a Failure: Learning from our Mistakes»), onde os profissionais partilham os seus erros, de uma forma aberta e pedagógica. Este é um modelo que deveria ser replicado em todos os países, no seio da comunidade profissional dos conservadores-restauradores, para que pudessem surgir espaços de debate e partilha sobre os erros na profissão, como parte do nosso processo de crescimento profissional e pessoal, e como forma de normalização do erro, em vez da sua estigmatização.
Ainda direcionado para os profissionais, Michele Marincola sugere uma abordagem que se inspira num modelo existente no sistema de saúde americano, e desenvolvido pela NASA («Patient Safety Report Program»). O modelo em questão assenta numa lógica de partilha voluntária e anónima por parte dos profissionais, de situações adversas e que possam mesmo configurar erros, e sem que daí resultem quaisquer ações punitivas. Estas partilhas são recolhidas e analisadas por uma entidade independente, que produz depois recomendações com vista à melhoria da prática profissional e das instituições onde a mesma acontece.
Por último, e direcionado para as instituições de ensino, é importante que se comece a introduzir este tema como parte do processo formativo dos futuros profissionais. O erro não pode ser apenas introduzido para falar de realidades passadas (como se fosse exclusivo dessas eras), anteriores ao universo da conservação e restauro atual, mas sim como um dos elementos que estrutura o processo evolutivo da prática profissional. Para além do enfoque em metodologias e teorias sobre a conservação e restauro, os estudantes deverão ser incentivados a refletir sobre os resultados das intervenções que realizam (assumindo a possibilidade do erro como parte integrante das mesmas), e sensibilizados para a necessidade de avaliarem de uma forma continuada, e ao longo da sua vida profissional, o impacto das suas ações no património que intervencionam ou gerem, e de partilharem esses resultados com a restante comunidade profissional.
Se os conservadores-restauradores, de acordo com o seu código de ética e deontologia, estão obrigados a contribuir para o desenvolvimento da profissão, partilhando experiências e informação, e se estão, igualmente, obrigados a respeitar a integridade dos Bens Culturais, a partilha dos erros enquadra-se, sem dúvida, nestas determinações. Manter o silêncio sobre este fenómeno, ignorar a sua existência e impedir um diálogo construtivo sobre o mesmo, apenas continuará a penalizar os seus profissionais, com um enorme prejuízo daí decorrente para aquilo que os próprios mais valorizam, acima de tudo: o património cultural.
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