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Arqueologia e crescimento: diálogo e bom senso para as primeiras páginas


Nunca o património arqueológico foi tantas vezes falado e pelos motivos mais diversos. A destruição do património arqueológico sobretudo no âmbito dos projectos agrícolas (mas não só, ressalve-se) que grassam por este país fora, dá, ironicamente, diga-se, direito a capa de revistas, a aberturas de telejornais, a reportagens alargadas sobre o Património que temos, pelos protectores que somos de um património ainda pouco conhecido, conforme podemos comprovar pelo que desde há 15 anos vem acontecendo à volta do projecto de Alqueva. Conforme se pode verificar pelos trabalhos realizados no Côa.


O “ataque” ao património arqueológico tem feito mover cadeiras em Comissões Parlamentares para ouvir todo um sector normalmente guiado por um silêncio demasiado ruidoso que de vez em quando se faz pronunciar. Um dos últimos exemplos mais públicos é o das ruínas que poderão ser da medieva Mesquita da Lisboa muçulmana que “obrigaram” a alterar projectos. Mas não podemos deixar de lembrar a irónica revolta tão divulgada de um deputado do Alentejo que, enquanto Ministro, não me recordo (posso estar a ser injusto, mas não me recordo) tenha feito alguma coisa para alterar as atitudes de um sector económico cuja modernização e crescimento choca, naturalmente, com a nossa realidade arqueológica caso exista um negligenciar constante e sistemático de regras e de normas estabelecidas, mesmo que algumas das vezes pouco evidentes.


A reacção imediata aos protagonismos negativos em torno da Arqueologia, tem feito extremar posições no entendimento técnico do como deve o Estado fazer para responder a todas estas afectações de sítios; incham umbigos do como resolver se fosse eu; desfazem-se em impropérios falaciosos discursos quando alguém defende uma solução, ou soluções, que não são norma.


Reage-se cada vez mais à velocidade da luz. Pensa-se cada vez menos à cadência do bom senso.

Defende-se a todo o custo que o património arqueológico é intocável, mas depois não se contextualiza a dimensão do que implica essa espécie de dogma... Relativiza-se o como criar as condições para que os casos de destruição não se sucedam, do como proteger um bem público assente na ausência de uma legislação eficaz.


Recentemente, temos vindo a assistir a mudanças importantes nesta área, sobretudo no Alentejo, que tem diminuído exponencialmente o número de “acidentes” e de crimes associados à agricultura extensiva, graças a uma atitude proactiva da tutela à qual não se pode deixar de associar a Norma Transversal 15/2018 da AG do PDR2020 e o Protocolo estabelecido entre o IFAP, AG do PDR2020 e a DGPC em finais de 2020, que prevê, entre outras acções, a disponibilização dos dados geo-referenciados do património arqueológico no parcelário agrícola e iSIP, sistemas de informação de consulta dos proprietários e investidores agrícolas dos técnicos que analisam os projectos agrícolas financiados, que seja dado conhecimento à tutela dos projectos agrícolas com património referenciado, de modo a que esta possa emitir o devido parecer. Não menos importante, esta Norma Transversal 15/2018 solicita apresentação de comunicação da DGPC em fase prévia e da certidão de conformidade [da salvaguarda patrimonial] em fase de pagamento.


Este tem sido, reconhecidamente, um passo extraordinário para limitar atentados, suscitado preocupação de quem tem que desenvolver o seu projeto agrícola e, naturalmente, uma fonte de diálogo entre promotor e a tutela que a médio prazo trará uma maior sensibilização de proprietários, arrendatários e promotores.


Mas, chegados aqui, e porque as anteriores medidas apenas atingem os projectos financiados e uma grande parte não passa por esse crivo, importa que as Cartas Arqueológicas municipais estejam actualizadas e, sobretudo, estejam feitas. E que a sua transposição esteja feita para a Base de Dados da DGPC (Endovélico), permitindo, assim, uma correcta e objectiva actuação da tutela.


Às vezes o simples gesto de inventariação e a transposição do sítio arqueológico para a caderneta do prédio agrícola seria suficiente para evitar determinados “crime”. Ou a anexação da relação dos sítios arqueológicos conhecidos, às vezes das cartas arqueológicas já existentes, aos instrumentos de gestão territorial, vulgo PDMs e PPs, permitiria de forma inequívoca que a tutela actuasse com efeitos práticos; permitiria, desde logo condicionar, determinar medidas de mitigação. E o simples estabelecer de regras para esses sítios, nos PDMs, assim como a divulgação das suas áreas de protecção ou a tipologia de obrigações a que estará sujeito quem pretenda desenvolver projectos que envolvam a mobilização de terras in situ ou nas suas proximidades, ficaria à simples distância de um clique.


A revisão dos PDMs de nova geração, que decorre actualmente por todo o país, é uma oportunidade extraordinária para o despoletar de processos que, desde já, têm que ter nas comunidades efeitos objectivos que não perniciosos. E, nesta fase, arqueólogos, tutela e associações de defesa do património, associações cívicas de cidadãos preocupados com o futuro que temos a tocar-nos à porta, têm a obrigação de criar um canal de diálogo que identifique, salvaguarde e valorize o sítio arqueológico.


Esta atitude não é, apenas, uma forma de minorar um problema cada vez mais frequente com os projectos agrícolas desde o Algarve ao Minho, mas em particular em projectos de grande dimensão desenvolvidos pela agricultura intensiva… é-o também com os projectos de florestação, com as prospecções para a exploração mineira. E não são de somenos os números de uns e outros. Às vezes com intervenções irreversíveis dadas as profundidades a que as máquinas rasgam as terras para recolher amostras ou criar condições para instalação de equipamentos de sondagens, os locais onde as efectuam ou a profundeza a que são feitas as trincheiras. Para não falar dos projectos das centrais fotovoltaicas libertadas em 2020 de efectuar avaliações de afectação de património.


A própria aplicação da Lei do Património está ela ferida de regulamentação que dificulta a eficácia da sua aplicabilidade. E por vezes, o bom senso e a informação fazem tanto.


Perante este cenário, torna-se urgente pensar o que queremos fazer à riqueza arqueológica deste país à beira-mar plantado. Uma abordagem com sentido prático que tenha como premissa principal regras e comportamentos que passam, desde logo, pela obrigação de todos os Municípios terem nos seus quadros pelo menos um arqueólogo, cuja actividade não se limite a funções nos museus e nos serviços educativos, mas integrados nas equipas técnicas de gestão territorial, sem desprimor da contratação externa de serviços a empresas de arqueologia, caso estejamos perante territórios de maior “pressão” patrimonial. Paralelamente, a realização ou actualização das Cartas Arqueológicas de todos os municípios portugueses.


Neste âmbito em que falamos de uma bazuca financeira, poderia ser desenvolvido um programa financiado por fundos comunitários, com as contrapartidas nacionais assumidas pela tutela e pelos municípios, podendo aqui ser envolvidos outros agentes numa lógica de mecenato ou com compensações fiscais, sobretudo aqueles cuja actividade pode por em risco sítios arqueológicos, como por exemplo a EDP, na instalação de equipamentos e acessórios de transporte de energia, ou empresas que desenvolvem a sua actividade na área florestal, agrícola ou mineira. Com uma metodologia de realização simples, muito próximo da fórmula encontrada para os Gabinetes Técnicos Locais cujo papel foi importantíssimo na definição, valorização e protecção dos Centros Históricos de muitas cidades e vilas deste país, envolvendo os arqueólogos municipais, onde estes existam, e contratando dois ou três arqueólogos mais por cada concelho e por um espaço de tempo que rondaria os 3 anos, alguns dos quais seriam, muito naturalmente, absorvidos mais tarde na estrutura do Estado, dada a necessidade de renovação de quadros e as necessidades existentes e reconhecidas pela tutela. Com uma coordenação regional que passaria pelas actuais Direções Regionais de Cultura, rapidamente teríamos documentos com uma radiografia aproximada da realidade arqueológica que somos, passando para outro nível as realidades negativas e os sítios “indetectáveis”, permitindo chegar a um registo objectivo que permitiria orientar proprietários, estabelecer regras mais claras ao nível dos instrumentos de gestão, permitir uma actuação mais rápida e eficaz da tutela.


Outros caminhos podemos percorrer. Ou abrir novas vias de comunicação. Mas o bom senso e a discussão séria podem começar por aqui?


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