Começo este artigo usando o título de um artigo de opinião escrito por João Pedro Cunha Ribeiro, no jornal Público no dia 07 de Agosto de 2023, como mote para este texto: “Há mais património para além dos museus e monumentos de Portugal”. Mesmo que o autor (e ao contrário do que prometia), acabe por se manter ancorado nessas dimensões de património ao longo do texto, tem o mérito de apontar para um aspecto que muitos profissionais da área do património cultural (que desenvolvem a sua actividade em outros contextos que não os museus e monumentos nacionais), percepcionam de uma forma muito clara.
De facto, se olharmos para o espaço mediático (que é o espaço por excelência para aferir a visibilidade e representação dos fenómenos sociais e culturais), existe uma quantidade de património e instituições que não encontram qualquer expressão, estando remetidas a uma condição de invisibilidade – completa ou quase total. São vários os exemplos (património industrial, património científico e técnico, património desportivo, arquivos, bibliotecas, sítios arqueológicos…) mas opto por me focar no património bibliográfico e documental (e por consequência nos arquivos), que é área onde venho desenvolvendo parte significativa da minha actividade profissional.
Se fizermos uma pesquisa na web ou nos principais jornais publicados do país, e se a cingirmos aos últimos três anos, deparamo-nos com um número diminuto de reportagens ou artigos de opinião centrados nesta realidade, quando comparados com os produzidos sobre museus e monumentos nacionais. Vemos, também, que ao contrário do que sucede nestas instituições (e ainda que em menor escala, na arqueologia), não existem intervenções de directores de arquivos (e só muito residualmente de alguns profissionais da área), sobre as condições de trabalho nos mesmos e as dificuldades que enfrentam. E ao contrário do que se verifica nas associações profissionais ligadas aos museus e representativas dos seus profissionais (ICOM; APOM), no Sindicato dos Trabalhadores da Arqueologia (STARQ), ou na Associação Profissional de Conservadores-restauradores de Portugal (ARP), vemos que a associação que representa os Bibliotecários, Arquivistas, e Profissionais da Informação e Documentação (BAD) tem um registo aparentemente inexistente de intervenções ou documentos no seu site, que alertem para estes aspectos, ou de carácter reivindicativo com vista à sua resolução.
Se temos vários documentos de arquivo e bibliográficos na lista de património classificado e, inclusive, na lista da UNESCO «Memória do Mundo» (como seja, e a título de exemplo, o Tratado de Tordesilhas, o Apocalipse do Lorvão, o Diário da Primeira Viagem de Vasco da Gama à Índia, o livro de Registo de Vistos concedidos pelo Cônsul Aristides de Sousa Mendes, ou os Documentos do Primeiro Voo Através do Atlântico Sul, realizado por Gago Coutinho e Sacadura Cabral), e se os arquivos (que em Portugal, na esfera do Estado, representam 308 arquivos municipais, 18 distritais e um nacional) apresentam condições ainda mais precárias ao nível do investimento, recursos humanos e infraestruturas, que os museus, o que justifica esta invisibilidade do património, por um lado, e a falta de mobilização por parte dos seus profissionais, por outro?
Se no que diz respeito à primeira questão a resposta me parece mais fácil de ensaiar, já quanto à segunda tenho mais dificuldades em chegar a uma conclusão.
A falta de visibilidade do património bibliográfico e documental, parece-me residir na conjugação de vários factores: estruturais (relacionados com o investimento na área, com o contexto de inserção dos arquivos e com o perfil dos seus profissionais); o processo evolutivo destas categorias de património (com uma afirmação mais tardia que o património artístico ou arqueológico); o alcance deste tipo de património (durante muito tempo confinado a um universo restrito de utilizadores); e o desinteresse político.
Começando pelas questões estruturais, uma parte dos arquivos encontra-se sob a tutela do Ministério da Cultura. Quer isto dizer que em muitos deles impera a mesma lógica de suborçamentação sentida por todas as instituições da área, e a escassez de recurso humanos, o que limita, obviamente, o desenvolvimento de planos de trabalho e projectos que confiram visibilidade. Quando enquadrados na administração local, mais concretamente nos municípios, sofrem, em muitos casos, da mesma lógica de suborçamentação, acrescidos do facto de nesse contexto, não possuírem autonomia, de estarem subordinados a uma estrutura de funcionamento e a objectivos definidos por estas, que lhe retiram, também aqui, margem para uma actuação e comunicação mais diversificadas e para lá desse âmbito – o estudo «Os profissionais de informação nos arquivos municipais em Portugal» é disso ilustrativo, referindo, entre outros, que apenas 58,4% dos arquivos municipais estão abertos ao público, o que ilustra bem as limitações destas instituições e o distanciamento relativamente às comunidades. Os recursos humanos (para além do número reduzido já referido), apresentam lacunas na formação o que compromete, inevitavelmente, a inovação e uma compreensão profunda da vocação destas instituições e da função e possibilidades destas realidades patrimoniais. Os números que surgem no mesmo estudo (mesmo que centrados na realidade dos arquivos municipais) são disso ilustrativo, mostrando uma realidade caracterizada pelas baixas qualificações: 54,2% dos profissionais não possuem formação superior, e apenas 25% dos que possuem apresentam uma formação especializada na área das Ciências da Informação.
O processo evolutivo e de afirmação dos documentos de arquivo e bibliográficos como categoria de património são outro aspecto que terá contribuído para esta falta de visibilidade. Em 2011 publiquei um artigo sobre este tema, onde detalho o processo em pormenor, mas refiro, apenas, dois aspectos que permitem evidenciar o desfasamento que existiu entre estas categorias patrimoniais e as realidades patrimoniais ligadas às artes plásticas ou à arqueologia. Se olharmos para os principais documentos normativos e cartas para a defesa do património produzidas a partir de 1920 (data do surgimento da primeira organização internacional para a salvaguarda do património – Comissão Internacional para a Cooperação Intelectual), temos que esperar até 1978 («Recomendações para a Protecção de Bens Culturais», UNESCO) para vermos os documentos de arquivo e bibliográficos como categorias patrimoniais, quando o património artístico e arqueológico, e os monumentos e sítios estão presentes nos principais documentos, desde a primeira metade do século passado. Na legislação nacional centrada na protecção do património, tivemos de esperar 53 anos para vermos esse reconhecimento, tendo vigorado desde 1932 (decreto n.º 20:985) e 1985 (ano da publicação da 1ª lei de bases do património) um diploma legislativo referente à protecção do património cultural, que contemplava apenas três tipologias: monumentos nacionais, obras de arte e património arqueológico.
O alcance do património arquivístico e bibliográfico, mais concretamente os utilizadores preferenciais destes, e a forma como as instituições cingiram (e ainda cingem) a sua comunicação a esse público, contribuiu igualmente para esta subalternização relativamente às categorias de património com maior visibilidade. Pelas características destes elementos, e pela sua importância como fontes primárias no estudo de várias áreas do conhecimento (ciências sociais e humanidades), os arquivos sempre estiveram orientados para os investigadores, assumindo a condição praticamente exclusiva de público-alvo destas instituições. Ao contrário dos museus, que assumem essa mesma valência mas que procuram explorar, também, de uma forma lúdica e pedagógica relações entre o património e o conhecimento (o que lhes confere públicos mais diversificados e com um carácter transversal), os arquivos mantiveram-se (e mantêm muitos deles), esse alinhamento exclusivo, remetendo-os para uma condição de nicho – o que dificulta a percepção da sua importância, valências e potencialidades, a públicos mais abrangentes.
Como último factor, estabeleci o desinteresse político. Fui construindo esta percepção ao longo dos quase 20 anos que levo de conservador-restaurador em relação com os arquivos, onde se foi tornando evidente que dentro do desinvestimento generalizado que existe no sector do património cultural, os arquivos e o património arquivístico e bibliográfico estão, claramente, no final da lista de prioridades. As razões que encontro para este facto encontram eco nos pontos anteriores, mas o principal argumento parece-me residir num outro aspecto, e que se prende com uma percepção por parte do poder político, que o investimento em arquivos e no seu património, não produz dividendos. Fui percebendo ao longo do tempo, que é muito mais fácil convencer decisores políticos a investir em museus, património edificado, ou outras formas de património que tenham visibilidade e cheguem a públicos mais vastos, do que em arquivos ou no restauro do seu património, percepcionados como de alcance reduzido e muito circunscritos, em termos de utilizadores e beneficiários.
A segunda questão que tinha deixado no lançamento deste texto, prendia-se com o porquê da falta de mobilização dos profissionais da área dos arquivos, na denúncia das condições de trabalho que enfrentam, junto do poder político, decisores e opinião pública. Confesso que para esta questão não encontro resposta, ficando-me, apenas, pela constatação, estranheza e algumas hipóteses. Poderá ser pelo peso dos aspectos referidos anteriormente; por muitos destes profissionais, (sobretudo os que estão nos arquivos municipais e em organizações fora da esfera pública), estarem submetidos a uma hierarquia e integrados em estruturas com múltiplas valências, serviços e prioridades, o que condiciona a tomada de posição; pelo facto de terem interiorizado a precaridade como parte integrante da profissão, uma vez que nunca conheceram outra realidade; ou pelo desalento e resignação que muitas vezes surge da constatação do tanto que há para conquistar e do longo caminho para andar. Poderá ser por uma destas razões, pela sua conjugação, ou por outras não consideradas. Deixo, contudo, em aberto a questão, na esperança que outros possam trazer uma outra luz sobre este tema…
Antes de concluir, não queria, contudo, deixar de referir alguns exemplos positivos que começam a contrariar esta invisibilidade do património documental e bibliográfico, no nosso país.
No Arquivo Histórico e Municipal de Cascais, o desenvolvimento de lógicas colaborativas (em contexto digital e não-digital) com as comunidades do território, envolvidas nos processos de estudo e identificação de conteúdos documentais, tem permitido chegar a públicos mais vastos, alargar o âmbito de relação da instituição com a comunidade, e potenciar o nível de conhecimento sobre o património pertencente à instituição. Ainda relacionado com o esforço para chegar a novos públicos, é igualmente positivo a presença de vários arquivos nas redes sociais (Arquivo Nacional Torre do Tombo, Arquivo Municipal de Lisboa, Arquivo Municipal Alfredo Pimenta…), e mesmo em espaços com uma projecção global, (como é o caso da presença do Arquivo Municipal de Lisboa no Google Arts&Culture), onde existem publicações e partilhas regulares de conteúdos relacionados com os respectivos fundos documentais, assumindo-se como canais de comunicação/ divulgação complementares aos meios convencionais, e com um alcance muito superior a estes. Um outro exemplo que marca uma novidade no contexto dos arquivos nacionais (e que, inevitavelmente, terá de ser considerada em qualquer estratégia de diversificação de públicos), prende-se com a criação de serviços educativos na Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas, que promove visitas de estudo por toda a rede de arquivos dependentes da DGLAB (nacionais e regionais), subordinadas a um conjunto de temas, relacionados com o património documental dessas instituições («Abolição da Pena de Morte», «Tribunal do Santo Ofício/ Inquisição», »A PIDE/DGS e outras polícias políticas»….). Por último, não podia deixar de destacar o contributo para a visibilidade dos arquivos e do património documental, dado pela Biblioteca e Arquivo Ephemera, através da acção do seu fundador e director, José Pacheco Pereira. Recentemente venceu o prémio Vasco Graça Moura, e durante vários anos manteve a emissão semanal de um programa no canal televisivo TVI, dando a conhecer vários objectos que integram este arquivo (que é o maior arquivo privado português), e a sua história.
São apenas alguns exemplos de iniciativas e projectos que começam a mudar a percepção dos arquivos na sociedade e do seu património, que pela sua relação com a memória e pelo seu papel único no conhecimento da história das comunidades e dos sítios, merecem muito mais destaque e visibilidade do que têm tido até aqui, e uma outra atenção nas políticas culturais do país.
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