No ano em que a revolução de 25 de abril celebra 50 anos, não há falta de iniciativas para a comemorar e, correndo o risco de sobrecarregar os leitores, sinto que também eu não poderia escrever sobre outro assunto. Todos os anos, durante o mês de abril, com as colegas do Serviço Educativo do Arquivo Municipal de Lisboa, percorremos as escolas do concelho para conversar com alunos do 1º ao 3º ciclo sobre os conceitos de revolução, democracia e liberdade de expressão, discutir como era a vida antes e depois da revolução, com o apoio de fotografias desses tempos guardadas no acervo do Arquivo Municipal e intervindo até artisticamente nalguns cartazes relacionados com a revolução. Por isso, não acordei hoje, este é um tema a que me tenho dedicado desde há vários anos. Então, qual a diferença este ano?
Para além de uma, óbvia, que é a de eu também estar a celebrar a mesma data redonda que a revolução, sentindo a mesma necessidade de balanços entre o caminho percorrido e o que me falta percorrer, com toda a sua carga simbólica de meio da vida… Este ano, existe ainda a novidade de estar a realizar uma recolha de memórias a que chamámos «O 25 de abril é das pessoas… e depois da liberdade?». Em parceria com a Unidade de Animação Socioeducativa da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, o Serviço Educativo do Arquivo Municipal de Lisboa tem vindo a ouvir os lisboetas, utentes dos centros de dia da SCML que viveram antes e depois da revolução, recolhendo o seu testemunho oral e também fotografias que nos mostrem como era a vida em Lisboa na época.
O que haveria então ainda de ouvir que soasse a novidade, que tivesse o poder de me surpreender ou encantar? Não há nada como ouvir dezenas de histórias de vida para nos fazer compreender melhor (mas ainda assim, não totalmente) como era a vida naquele tempo. Porque são de outros tempos, mas estas pessoas têm sonhos e preocupações como nós, e ao ouvi-los não conseguimos deixar de nos sentir interpelados e transformados pelas suas histórias.
Deixo aqui alguns dos temas que me surpreenderam, seja pela constância com que os ouvi da boca destes lisboetas, seja pelas implicações ou consequências que tiveram na sua vida depois da revolução.
A Educação. Pessoas que andaram à gandaia* a infância inteira, para ajudar à sobrevivência da família e só aprenderam a ler e escrever na tropa. Analfabetos, tolhidos toda a vida por esta vergonha que sempre quiseram esconder, chorando quando têm de assinar a declaração de autorização de gravação da sua voz. Meninas de 12 anos a trabalhar em fábricas, escondidas no sótão quando vinha a inspeção do trabalho. Jovens raparigas com sonhos, que estudavam às escondidas, apenas para serem espancadas pelos pais, na própria escola, quando eram descobertas.
A Pobreza. Crianças presas por andarem descalças, que usavam sapatos feitos em casa, com cartão rijo e tiras de tecido, que se desfaziam quando chovia, pessoas que compram os primeiros sapatos novos depois de meses ou anos de trabalho (e que ainda os sabem descrever com todos os pormenores). E a fome… a sopa do Barroso, o pão que dava para 4 refeições, a sardinha que alimentava a família inteira.
Problemas de habitação. No centro de Lisboa, sem água canalizada, eletricidade ou gás. Na aldeia, idem, casas com chão de terra, de apenas uma divisão para famílias numerosas. Pessoas despejadas de casas municipais por não serem casadas, construindo barracas com caixas de sabão amarelo e sabão azul e branco. E as casas municipais vazias, desocupadas. A ocupação dessas casas depois do 25 de abril.
As mulheres e os seus direitos. Não havia licença de maternidade, era esperado que a mulher ficasse em casa com os filhos. Se não pudesse, os filhos recém-nascidos iam com elas para o trabalho ou ficavam com amas ou pessoas de confiança a partir de poucos dias de vida. Pessoas que por sua iniciativa criam creches em bairros da cidade, depois do 25 de abril, para dar resposta à necessidade de apoio que as mulheres e as famílias tinham.
A falta de liberdade e as consequências nas relações com amigos e vizinhos. Pessoas presas por refilarem em voz alta com a falta de apoio às jovens mães trabalhadoras. Outras que nunca se aproximaram dos amigos ou vizinhos com mais intimidade e confiança, por desconhecerem a sua simpatia política. Que imediatamente, sem precisar de pensar, consideram a liberdade de expressão como a principal conquista da revolução.
Finalmente, quando acordo de noite e dou comigo a relembrar estes testemunhos, a compará-los com a minha experiência privilegiada de filha da revolução, reflito sobre a importância de os ouvirmos nestes tempos, e como sobretudo os jovens de hoje precisam mesmo de os ouvir, refletir e agir a partir desta realidade. Sei, porque todos os anos falamos disto, que um jovem hoje, preocupado com o telemóvel e os ténis da moda, não consegue ter noção do que era viver sem liberdade de expressão. É muito difícil compreender o peso que as pessoas sentiam, por não poderem falar à vontade, ou a preocupação com a subsistência da família, sem apoios de nenhum género. Isto não se aprende nos livros. Daí a importância de registar cada um destes testemunhos, agora e antes que seja tarde, para que permaneçam para sempre como memória deste momento da nossa história.
Assim, a partir do próximo mês de maio, estes e outros testemunhos poderão ser ouvidos no podcast da Câmara Municipal de Lisboa.
Paralelamente, continuam a decorrer as campanhas de angariação de filmes e fotografias deste período revolucionário. Para mais informações pode contactar-nos através do email arquivomunicipal.se@cm-lisboa.pt
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*[Gíria] Ato de remexer o lixo à procura do que nele se pode aproveitar."gandaia", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2024, https://dicionario.priberam.org/gandaia.
O autor utiliza o Acordo Ortográfico.
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