Perante a imensidão da paisagem, dispomo-nos frente à oliveira emergente no primeiro plano do nosso olhar... na silhueta do cerro límpido de restolhos e azinheiras, esta é uma imagem que nos prende. E por aqui caminhamos, bebendo um fotograma cuja representação é o limite entre a realidade absorvida através de um romance, que é eterno nas nossas mãos, e o não sei quê de imaginário de um acontecimento respirando um tempo histórico objetivo trazido no texto do romancista.
Falamos de Patrimónios, embora não pareça. De identidades culturais. Olhando a paisagem que se desdobra, ondulante, sem fim. Lendo um livro. Sentindo os restolhos recentes e ainda tensos no seu respirar debaixo dos nossos passos no compasso marcado pelas botas que poderiam ser cardadas. Daqui a pouco serão pastagem para ovelhas. Brancas, pretas, malatas. Este é um quadro de identidade cultural construído sobretudo nos últimos 100 anos por um coletivo vivo. Um quadro real que faz parte do pressuposto de que as identidades culturais são transportadas por alguém (por alguéns) e nessa dialética consolidadas as representações que as identificam.
“Então, quer faça frio ou calor, ninguém consegue demovê-lo: de rastos, vai postar-se na cova do forno, abrigado pelo monte de pedras”. Estamos na Seara de Vento, página 45, linhas 18 a 21, Forja, 9ª edição, 1979. Aquele espaço que serve de refúgio ao filho do Palma talvez seja este que reencontramos, mais de meio século depois, tão intensamente num espaço vazio, abandonado, impondo-se viril na silhueta pueril de um cerro. Também maior. Na capa deste livro, Isabel Lobinho, que ilustra este eterno romance de Manuel da Fonseca, o seu desenho leva-nos, parafraseando o frisado dos cerros vestidos de amarelo torrado, até à casa isolada, seguramente a do Palma, hoje desaparecida pela revolta social que representava, lado a lado com o Sol a pôr-se, efervescente, no horizonte. Um fotograma que é o instante real que transpira o tempo. Os tempos. Os de ontem e os de hoje. Uma espécie de imobilidade viva, diria Roland Barthes.
Estamos numa geografia rural, entre os Barros de Beja e a serra de Alcaria Ruiva, no sopé do Caldeirão que espreita a Sul. Freguesia de Trindade. Uma paisagem rural aparentemente eterna, milenarmente humanizada, quase estática aos olhos de quem por aqui calcorreou décadas incontáveis, mas imensa de homens, de histórias, de patrimónios vivos. De linguajares, de queijinhos secos e azeitonas galegas. Orégãos e peixe da ribeira. Açordas, migas, cantes arrastados, balcões improvisados tingidos de vinhos tintos e brancos produzidos em talhas imponentes.
Esta é uma paisagem quase fóssil nas novas áreas rurais que se desenham aqui tão perto, trazidas por um regadio frio, descaracterizado, avaro por metal. Num espaço de tempo em que tudo é efémero, a realidade daquilo que vemos neste instante imenso é também o reflexo de um tempo que precisa ser protegido. Esta é a paisagem rural por excelência de um património material e imaterial, enquanto local que recebeu de forma contínua abordagens tradicionais de produção, com tudo o que isso implica, que foram sistematicamente alteradas e que criaram aquilo que hoje vemos à nossa frente.
“…O próprio solo produtivo, a morfologia, a água, as infraestruturas, a vegetação, os povoados humanos, os edifícios/…/ a arquitetura vernacular, o transporte e redes de comércio /…/ bem como conexões e configurações físicas, culturais e ambientais mais amplas” é isto a paisagem rural como património, entendido como tal pelo ICOMOS na sua 19ª Assembleia Geral, realizada a 15 de Dezembro de 2017.
Voltamos ao livro? Ali suspenso a cada olhar em torno deste pedaço do Cantinho da Ribeira, deste caminho de água, hoje seco, chamado de Terges, onde até há pouco tempo antes de se construir a ponte, se esperava nas suas margens, dias a fio, o amainar da sua raiva para poder levar à última morada aquele que da vida se desprendia em tempo de cheias, é já um fragmento deste território de memórias, de emoções, de estórias. É, ele próprio, “Seara de Vento” chamado, o documento que suporta a importância de salvaguardar esta paisagem tal qual a vemos. Tal qual Manuel da Fonseca, Homem e Escritor, a viu.
A árvore está lá. Uma oliveira rasgando o que resta de um forno ou dos muros do fundo do quintal, com as suas raízes tensas, sôfregas, inundando de memórias estas terras castanho-avermelhadas ainda acolhendo trigos e cevadas. Dos suões de cristal e do cheiro a chuva vindo da banda do Guadiana, que quase vislumbramos nesta manhã. Lugar de poiso de uma rapina que rapidamente se mescla com a brisa quente logo que nos vê assomar.
A imagem desta árvore, deste amontoado de pedras iludindo aos olhos o forno derrubado, é tão verdadeira…! Traz-nos o Palma do livro, afundado “até ao profundo adormecimento”, ouvindo “o choro da nortada [que] trespassa a solidão da noite”. E todos os outros Palmas deste Alentejo imenso que sentiram essa mesma nortada infiltrar-se “…pelas frinchas das janelas e da porta, pelas telhas, [e que afogava] os casebres de gemidos, queixas, agonias.”
Nesta espécie de radiografia de um tempo próprio onde o homem era queimado vivo pelo abrasivo respirar da terra e pelos delírios do Sol, nos tempos de ceifa que se estendiam de Maio a Agosto, ou pelos frios das geadas nos meses da apanha da azeitona, temos que fincar os pés na certeza de que estas memórias são um Património que é preciso preservar para revelar todas as emoções que transporta de um caminho de gerações que moldaram este Alentejo às suas e pelas suas mãos. Um conceito de Património em que o imenso e lento compasso dos ponteiros do relógio é marcado pela paisagem, pelos objetos que nela respiram e pela memória que se reacende sempre que a olhamos, como se cada imagem fosse a bátega fria e muda do deslizar incontrolável duma temporalidade, também ela, imensurável.
Paisagem, livro, memória histórica de um tempo tão recente e tão distante que recusam a banalidade, assumindo o ser real. Olhares transformadores, recriadores de vivências emersas em palavras revisitadas pelo gesto enciclopédico de uma identidade cultural que está a desaparecer.
É urgente classificar para dignificar. A árvore, os serros mansos de restolhos, o livro doce e amargo que imortalizaram o desespero de um homem que foi, ele próprio na voragem da sua vida, gerações a fio de sofrimento, fome, perseverança, coragem.
Esta geografia cultural tem que ser, inevitavelmente, protegida até porque é algo que nos transmite informação, saber, conhecimento, emoções.
Cantinho da Ribeira, Seara de Vento, paisagens ali para as bandas da Trindade, território de Beja. Patrimónios eternos que precisam ser gravados a fogo na pele para dignificar a memória dos ausentes e valorizar aqueles que ainda transportam esta identidade cultural de ganhões e charnequeiros e que resistem aos tempos frágeis de hoje! Alimentando estas paisagens!
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico.