Começam a ser conhecidos os primeiros balanços do Ano Europeu do Património Cultural (adiante AEPC). Dois relatórios de monitorização já disponíveis contém dados muito interessantes e podem ser consultados aqui e aqui.
No plano europeu salientam-se os seguintes dados:
a) cerca de meia centena de acontecimentos de alto nível (conferências, fóruns, feiras, etc., organizados directamente pela ou com o apoio da Comissão Europeia), que reuniram mais de um milhão de participantes;
b) 753 iniciativas certificadas com o selo do AEPC, três quartos das quais no âmbito dos programas Erasmus +, Interreg / Urbact, Horizonte 2020, ERDF/ESF/EAFRD;
c) mais de quatrocentas mil visitas ao sítio web e cerca de oito mil subscritores do boletim digital;
d) mais de uma dúzia de publicações-chave;
e) quatro cartas definidoras de políticas para o futuro: “Quadro Europeu de Acção em Património Cultural”, “Princípios Europeus de Qualidade para Intervenções em Património Cultural”, “Recomendações sobre turismo cultural sustentável” e “Recomendações e casos de estudo de boas práticas em competências patrimoniais, formação e conhecimento”.
A estes números acrescem os que resultam das actividades empreendidas a nível nacional (nos países da própria UE e nos chamados países associados) e das que foram promovidas pelas organizações não-governamentais (ONG) tidas como “partes interessadas” (stakeholders). Recorde-se, a propósito, que a própria iniciativa da organização do AEPC decorreu destas ONG, que incessantemente pressionaram as diferentes instâncias do poder europeu (Parlamento e Comissão) até que lograram atingir o seu objectivo. Não foram nem políticos ou “burocratas” nem em Bruxelas, nem a nível nacional, que pensaram e combateram para que o AEPC fosse celebrado. Foi a chamada “sociedade civil” e convém por as coisas no se devido lugar.
No plano nacional assinalam-se mais de dezoito mil acontecimentos (18365, para ser exacto), dos quais a esmagadora maioria organizada pelo coordenadores nacionais (17297). As ONG, partes interessadas, contribuíram somente com menos de meio milhar (457) e os países associados com pouco mais de seis centenas (611). De todas estas iniciativas, quase treze mil foram certificadas com o selo do AEPC (12834), mais uma vez a imensa maioria pelos coordenadores nacionais (12411) e somente pouco mais de duas dezenas (223) pelas ONG e um pouco menos (200) pelos países associados. Recorde-se, a propósito, que as indicações para o AEPC eram as de sermos muito estritos na certificação de iniciativas, apenas considerando as de natureza realmente europeia ou pelo menos transnacional. E entre todas privilegiar as que estabelecessem reflexão inovadora ou linhas de orientação para o futuro. O ICOM Europa, por exemplo, apenas aceitou certificar cerca de uma dezena de iniciativas de âmbito europeu propostas por ONG e não atribuiu selo do AEPC a nenhum das suas actividades regulares (conferências, seminários, debates). Somente o fez em relação a duas Declarações, uma em conjunto com a Federação Mundial dos Amigos dos Museus, a chamada Declaração do Funchal, “Museus, Marcos Sociais”, e outra em conjunto com o ICOM Alemanha, “Preservando a autonomia dos museus por ocasião do centésimo aniversário do fim da Primeira Guerra Mundial” (ver em network.icom.museum/europe).
É muito, tudo o que se conseguiu fazer durante o AEPC? É pouco?
Bom, na realidade é pouco. Para a maioria, a grande maioria dos europeus, o AEPC passou sem sequer ser sentido. Algumas iniciativas emblemáticas propostas pelas ONG acabaram por ser inviabilizadas pela burocracia e pela “baixa política” europeia (por exemplo, o toque de todos sinos europeus em dia a fixar, proposto pela Europa Nostra; ou a criação de uma exposição itinerante sobre o património cultural europeu, montada em camiões destinados a circular e fixarem-se durante apenas alguns dias ou uma a duas semanas em praças centrais das cidades europeias, proposta pelo ICOM Europa). Mas, como sempre na vida, pouco é ainda assim melhor do que nada. E como dizia Sneška Quaedvlieg-Mihailović, secretária-geral da Europa Nostra e uma das principais impulsionadores do AEPC, se não conseguimos agora atingir andares superiores no edifício, não iremos pelo menos regressar às caves onde no início dos encontrávamos.
Uma das principais razões para a sensação de pouco é o gigantesco desequilíbrio regional da celebração do AEPC. E aqui a posição de Portugal merece especial reflexão, mas não pelas razões que mais facilmente poderíamos antecipar, antes pelo contrário.
Conhecemos bem o ponto de partida. Em vésperas do AEPC, quando foram divulgados os resultados do primeiro Eurobarómetro sobre temas de Património Cultural (ele mesmo um dos benefícios que lhe devem ser atribuídos), chamei a atenção publicamente para a posição em que nos encontrávamos (ver aqui), a saber: na vanguarda em indicadores proclamatórios e na retaguarda em indicadores de efectiva prática e compromisso cívicos. Ou seja, éramos, penso que continuamos a ser, dos primeiros a afirmar o nosso orgulho pelo património; mas éramos também, e somos, dos últimos, ou mesmo os últimos, a visitar monumentos e museus ou participar em actividades que os envolvam.
Ora, sendo assim, perguntar-se-á o que terá acontecido para que agora surjamos em primeiro lugar no gráfico que documenta o número de iniciativas do AEPC realizadas em cada país e em terceiro tanto no número de selos de credenciação atribuídos como no número de participantes envolvidos? Números que seriam quase estratosféricos se fossem observados em proporção relativamente às populações ou aos territórios dos outros países melhor cotados. Tão estratosféricos que ninguém neles acreditaria. Foram, pois inventados? Não cremos. Trata-se de algo mais português.
Números, números, números. Quanto maiores, melhor – assim pensamos frequentemente, na secreta esperança de que no final do dia ninguém se dê ao trabalho de esmiuçar o que lhes vai por detrás. E o que vai, neste caso? Bom, em primeiro lugar um coordenador nacional do AEPC de grande capacidade empreendedora e imensa sabedoria, Guilherme d’Oliveira Martins. Desde que soube desta nomeação tive logo oportunidade de dizer da minha satisfação. Depois, de uma máquina administrativa do Estado já habituada em cavalgar datas comemorativas (tipicamente Dias ou Anos internacionais), fornecendo plataformas electrónicas de carregamento de iniciativas, todas ao alcance de um clique apenas e que assim lhe permitem também simular utilidade social e actividade que realmente não tem. Por fim, o mais tipicamente português: a esperteza-saloia e o “vale tudo” – o que neste caso quis dizer tudo mesmo, sem qualquer critério, do livro de poemas ao borda-d’água, da charla do dia ao documento do mês… tudo pôde ser credenciado, tudo contribuiu para fazer número. Foi-se ao ponto de, contra todas as indicações europeias, banalizar de tal forma o selo do AEPC que o vimos inscrito em folhas de correspondência oficial de organismo públicos e até privados, como todos, meramente por existirem, fossem co-titulares da iniciativa. Se fosse em monarquia, diríamos que não haveria cão para tanto barão, nem onde para tanto conde… mas como estamos em república limitamo-nos a encolher os ombros com a resignação própria do Zé Povinho em face do baile de máscaras dos que, nas cortes, todas as cortes, tomam os outros por tontos. É o país onde o palácio do poder continua a ser rodeado de ruínas e hortas, mas a praia está perto e a vida é curta. Coitados apenas daqueles de nós que, indo lá fora, temos de suportar os risos ou até as felicitações cínicas pelos extraordinários sucessos da nossa pátria bem-amada. Mas é a vida, e sempre podemos responder que o clima é ameno e, até ver, a segurança invejável. No entretanto, aguardemos com fé os resultados de novo Eurobarómetro.