Entre o Natal e o Carnaval, já à vista com disfarces nas grandes e pequenas superfícies, será oportuno questionarmo-nos como conseguimos, numa altura em que as festas estão impregnadas de referências globais e interesses comerciais, levar os mais novos a despertar para a origem e significado profundo das festividades e sua relação com os ciclos astrais e agrícolas.
Nos últimos dois anos no Sotavento Algarvio, procurámos embarcar neste desafio através de um projecto educativo “Festividades Cíclicas. Descobrindo as tradições festivas ao longo do ano”, dinamizado com escolas do 1º e 2º ciclos do concelho de Vila Real de Santo António. O projecto visou sensibilizar crianças e educadores para as raízes milenares das festividades que continuamos a celebrar e dar a conhecer antigas tradições festivas no Algarve, na sua ligação ao território e aos ciclos astral e agrícola.
Ao longo do projecto fomos procurando dar resposta a algumas questões:
De que forma as festas acompanham os ciclos astrais – organizando-se em função e equinócios e solstícios - ciclo vegetativo e o calendário agrícola?
Por que razão terá o cristianismo sobreposto as suas festas (celebrando Cristo, Nossa Senhora, os Santos) às datas festivas já existentes, profundamente ligadas ao ciclo cósmico e vegetativo?
O que é que na forma como comemoramos determinadas festas (o que fazemos, o que dizemos, o que comemos, elementos materiais e simbólicos associados,…) continua a evocar antigas tradições e crenças ligadas à natureza? Veja-se, por exemplo, os ovos da Páscoa, os piqueniques colectivos e os ramos de giesta pelo 1º de Maio, a composição do ramo da espiga na 5ª feira das Ascensão, o presépio algarvio com as searinhas e as laranjas em torno do menino Jesus, os banhos santos no final de Agosto ou as fogueiras pelos Santos populares e pelo Natal…
O que revelam as festas da relação entre o individuo e a comunidade e entre esta e o divino? Porque é a festa momento de excesso, refeições fartas, exaltação lúdica e liberdade, contrastando com o quotidiano?
O que se come e como se come nos dias festivos (o Entrudo, a Páscoa, os Santos Populares, o Dia de Todos os Santos, o Natal,…) e porquê?
O que tem permanecido e o que se tem alterado na forma como assinalamos as festividades?
Que ameaças existem hoje à continuidade de algumas festas? Veja-se a progressiva implantação do “Halloween” ou Dia das Bruxas em Portugal, uma tradição anglo-saxónica que ameaça a continuidade do “Pão por Deus”, artificializando e descontextualizando manifestações comunitárias antigas nos primeiros dias de Novembro, que remetiam para a ancestral relação do homem com a morte e com os seus antepassados.
O calendário baseia-se na relação do homem com a natureza e o cosmos. Durante o ano, estruturado em função de equinócios e solstícios e pelos ciclos lunar e solar, existem dois grandes períodos festivos: o ciclo da Primavera/Verão, marcado pela abundância alimentar, decorações florais evocando a renovação natureza, presença de crianças e jovens; e o ciclo de Outono/Inverno, caracterizado pela intensificação da relação entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, manjares cerimoniais e culto dos antepassados. Veja-se como a Páscoa se associa ao equinócio da Primavera, quando a natureza se renova, e o Natal e os Santos Populares, ambos comemorados com grandes fogueiras colectivas, aos solstícios de Inverno e Verão, respectivamente.
Hoje a percepção desta relação entre o ciclo festivo, os ciclos do sol e da lua, da vegetação e o calendário agrícola e pastoril está a perder-se. Numa altura em que tudo (bens alimentares, consumíveis vários) parece sempre disponível numa qualquer prateleira, torna-se difícil compreender a dimensão de incerteza, especialmente ao nível alimentar, que acompanhava a actividade agrícola nas sociedades passadas e a necessidade que havia de, através da festa, de ritos celebrados ciclicamente (todos os anos, na mesma altura e da mesma forma), se estabelecer ligação com os antepassados, com as entidades divinas, e se pedir proteção para a comunidade e fertilidade para a terra, propiciando o eterno renascer da natureza, garante da sua sobrevivência.
Como despertar os mais novos para esta relação: festas, calendário, ciclo astral, vegetativo e agrícola?
O projecto iniciou-se nas salas de aula com a apresentação de um diaporama/jogo sobre as festividades cíclicas, baseado na relação entre o ciclo astral, o ciclo agrícola e as festas.
Partiu-se da percepção da relação entre o movimento da terra à volta do sol, a inclinação do eixo terrestre, os equinócios e solstícios e as estações do ano (mais calor/mais frio, dias maiores/dias menores), e sua influência no ciclo das plantas, de que os animais e o homem dependem para viver. Estas regularidades no cosmos estruturam o calendário agrícola (melhores momentos para semear, proteger, cuidar, colher) e o calendário festivo.
Explorada a relação entre estes ciclos, pedia-se às crianças para procurarem relacionar (a partir de imagens diversas) elementos das várias festividades (Dia dos mortos, São Martinho, Natal, passagem de ano, Janeiras, Dia de N. Sra das Candeias, Entrudo, Domingo de Ramos, Domingo de Aleluia, Maios e Maias, Quinta-feira da Espiga, Santos Populares, Festas de nossas Senhoras e Santas Padroeiras no Verão, Banhos Santos,…), como por exemplo: flores, ovos, amêndoas, doces diversos, crianças, espigas, castanhas e vinho novo, laranjas, banhos/água, fogueiras, com o calendário ao longo do ano. Facilitava-se assim, de uma forma lúdica, a percepção da relação entre a festividade, os elementos que a caracterizam (simbólicos, alimentares) e o momento do ano em que é celebrada.
Seguiu-se, num outro momento, o desenvolvimento do trabalho de pesquisa escola – comunidade. As crianças, transformadas em pequenos investigadores, recolheram informação sobre as tradições festivas na sua região, ao longo do calendário, através da aplicação de guião de entrevista, previamente preparado e entregue a cada aluno, junto da população local.
Mas foi com a realização de oficinas ao longo do calendário festivo, umas nas escolas e outras no CIIP Cacela, ao fim de semana (para crianças e famílias), que fomos explorando e trabalhando mais em detalhe alguns dos elementos e dimensão simbólica das várias festas. Propiciou-se também às crianças o envolvimento directo e de forma partilhada em alguns dos momentos festivos. Detenhamo-nos sobre algumas das temáticas exploradas.
Talegos para o Pão por Deus
Com crianças de Vila Nova de Cacela dinamizaram-se, nas escolas, oficinas de costura de bolsas de retalhos, no sentido de se reavivar a tradição de, no dia 1 de Novembro, andarem as crianças de porta em porta com um saco de pano, pedindo pelos santos, pelas almas ou pelos defuntos. Recebiam no saco: figos secos, figos cheios, amêndoas, nozes, bolinhos,…
As crianças trouxeram retalhos de tecido de casa, coseram-nos, fizeram o cordão torcido e as borlas com restinhos de lã. Foram depois desafiadas para irem pedir, pelos Santos e Finados, de porta em porta, dizendo expressões como: Pão por Deus ou Bolinho, bolinho, pela alma do defuntinho.
Figos cheios, estrelas de figo e bombons de figo
Numa oficina para o público em geral, no início de Novembro, partilhámos receitas e confeccionámos figos cheios, estrelas de figo e bombons de figo, enquanto se conversou sobre tradições festivas associadas aos primeiros dias de Novembro.
Por altura do dia de “Todos os Santos”, que anuncia um ciclo de festividades ligado ao Culto dos Mortos, era tradição por todo o Algarve confeccionarem-se os figos-cheios, bombons de figo e estrelas de figo, por vezes chamados de "Santos". O figo e a amêndoa, terminada a época da apanha, eram os ingredientes principais destas iguarias que eram oferecidas a familiares e amigos, degustadas no dia de todos os Santos e Dia dos Finados com um cálice de aguardente, ou oferecidas à criançada que vinha, com um saco de pano ou uma cestinha, pedir “pelos Santos” ou pelas alminhas.
Armar na escola o tradicional presépio algarvio
Nos primeiros dias de Dezembro desafiámos as turmas envolvidas no projecto a armarem o presépio algarvio na sua escola. Num primeiro momento, semearam-se as searinhas de trigo nas latas de conserva que os meninos trouxeram de casa. Cerca de uma semana depois, quando o trigo já germinava, voltou-se às escolas para armar o presépio com o Menino Jesus, criado pelas crianças, elevado ao centro em degraus, cercado das searinhas, laranjas, romãs, alfarrobas e outros frutos oferecidos ao Menino com o pedido de boas colheitas. Conversou-se também sobre outras tradições Natalícias como a queima do madeiro, a missa do galo, o que se come, a ceia em família, que ajudam a descobrir o sentido mais profundo desta celebração associada ao solstício de Inverno.
Oficina de Carnaval “Máscaras criativas”
Para assinalar o Carnaval desafiámos crianças a criar a sua máscara enquanto se falou sobre o significado da máscara nesta época festiva. Presentes em diferentes geografias, as máscaras, com formas muito distintas, representaram ao longo dos séculos, seres sobrenaturais, as divindades e os antepassados. O Carnaval, no limiar da Primavera, aparece como vestígio de remotas cerimónias de purificação e expulsão das forças malignas do Inverno com vista ao renovar da natureza. É um tempo de excesso autorizado, de transgressão, de irreverência. Hoje, os mascarados, nos bailes e desfiles de Carnaval, confiantes no anonimato, brincam, extravasando impulsos reprimidos e criticam a ordem social.
Maios e coroas de flores das Maias
Realizaram-se várias oficinas nas escolas e no CIIPC, para a comunidade e público em geral, no sentido de garantir o envolvimento colectivo numa das festividades mais identificadoras e antigas da região. No Algarve, em muitos lugares, é tradição no primeiro dia de Maio, criarem-se os Maios ou Maias, enfeitá-los e colocá-los na rua. Estamos a falar de bonecos e bonecas representando pessoas, em tamanho natural, cheios com palha, trapos, jornais amachucados e vestidos com roupa usada. São feitos pelas populações com simplicidade e improvisação, encenando actividades quotidianas, com dizeres a propósito em prosa ou verso.
Bonecos, ou personagens vivas como as Maias (meninas vestidas de branco enfeitadas com coroas de flores), são reminiscências de costumes ligados ao eclodir da Primavera, assinalando a renovação natureza e o poder fecundante da vegetação que desabrocha.
Nestas oficinas, ficámos a conhecer estas festividades antigas criando Maios que saíram à rua em Santa Rita nos primeiros dias de Maio em 2017 e 2018.
Ramo da Espiga
No dia da Ascensão, designado popularmente por quinta-feira da Espiga (que tem lugar quarenta dias após o domingo de Páscoa), fomos para o campo, com algumas das turmas do projecto. As crianças lançaram-se com entusiasmo na apanha de espigas, papoilas, malmequeres, ramos de oliveira e de romanzeira e aprenderam sobre o significado desse dia e do ramo. É tradição nesse dia colher-se pelos campos o ramo da espiga, que é constituído por: espigas de trigo, cevada ou centeio (abundância de pão); ramo de oliveira (paz); papoilas (alegria); malmequeres brancos (prata); e amarelos (ouro). No Algarve é comum colher-se também a flor da romãzeira, simbolizando o poder. Com estas plantas faz-se um ramo que se guarda e pendura atrás da porta até ao ano seguinte. Segundo a crença popular, traz paz e prosperidade ao lar.
As mouras encantadas e a noite de São João
Nestas oficinas dinamizadas nas escolas, depois de ouvirem falar sobre as festas do São João cujas celebrações e crenças mergulham raízes em antigos cultos e festividades solares e solsticiais ligados à fertilidade, ao apogeu da força, calor e poder fecundante do sol, as crianças ouviram lendas de mouras encantadas e seus aparecimentos na noite de São João. É nessa altura que as mouras aparecem penteando os seus longos cabelos e oferecendo os seus tesouros a quem as ouse desencantar. No final, recriaram ou recontaram uma lenda, identificaram personagens, elementos simbólicos e dramatizaram-na com teatro de sombras.
Ao longo deste projecto, dinamizado entre 2017 e 2018 pelo Centro de Investigação e Informação do Património de Cacela / Câmara Municipal de Vila Real de Santo António, as crianças e a comunidade educativa em geral, descobriram que as festividades cíclicas ainda mantêm vivas (nas formas como se celebram, nos rituais, nos elementos simbólicos, nas prácticas alimentares) relações antigas e profundas com os ciclos naturais. Acreditamos que, depois deste projecto, a percepção das festas pelos mais novos será capaz de ir mais longe do que o que é visível, ao longo do ano, nas montras das lojas (presentes e decorações no Natal, fatos e máscaras no Carnaval, ovos de chocolate na Páscoa). No céu e na natureza serão capazes de descobrir as chaves para se aproximarem do significado mais antigo e profundo das festividades cíclicas.