Parece ultrapassado o entendimento do património cultural como uma coleção de vestígios de “grandes realizações do passado”, mas não é menos verdade que a sua gestão pelo Estado permanece largamente vinculada a dimensões estéticas, não raro prisioneiras de anacrónicos impulsos nacionalistas. Porém, esse património foi gerado através de processos complexos com dimensões socioeconómicas, tecnológicas e ambientais, ou seja, permanece como um conjunto de restos fósseis de estratégias humanas passadas, também testemunhando suas tendências adaptativas, transformadoras ou, por vezes, de negação dos desafios contextuais. Neste sentido, a herança patrimonial do passado testemunha o sucesso adaptativo das culturas do passado, mas muitas vezes também indica como as culturas e civilizações do passado se extinguiram, ou seja, como elas deixaram de ser sustentáveis.
Nas sociedades contemporâneas, o património organiza os territórios, permitindo-lhes transformarem-se em paisagens culturais vivas, atuando como o invariante dentro deles: o componente que, permanecendo fisicamente inalterado, permite considerar uma continuidade entre passado, presente e futuro, quando tudo o mais se transforma. Não tem sentido, neste contexto, um investimento no património restrito à “glorificação” de episódios passados, pois esta não permite assimilar as contradições que o geraram, empobrecendo por isso o valor social e estratégico dessa herança, para a resiliência e sustentabilidade das sociedades contemporâneas.
A extensão do conceito de património a paisagens inteiras, fundindo virtualmente as características antrópicas e naturais, resulta da aceleração do processo de globalização: uma vez que a sustentabilidade é agora entendida como um fenómeno total, implicando todas as variáveis na escala do planeta, a segregação entre o cultural e o natural tende a cessar e o património tende a incorporar cada vez mais vestígios. É um resultado da “grande aceleração” na sua fase digital atual.
Um processo semelhante ocorreu no processo de aceleração anterior, na transição do século XVIII para o século XIX, expresso através da compreensão filosófica dos seres humanos como parte da natureza. A globalização, ao mudar a natureza dos processos sociais e económicos, integrando e universalizando as tecnologias, tende a exercer uma pressão crescente sobre as perceções culturais, estruturando cada vez mais uma nova identidade, a Humana, que se vai sobrepondo a outras, familiares, profissionais ou étnicas. A aceleração atual torna mais evidente o papel da ação humana, e assim tende a reivindicar a dimensão cultural da compreensão de qualquer característica natural, mas em certo sentido é o mesmo processo de fusão, iniciado há mais de 200 anos, mas interrompido pela posterior segregação entre ciências humanas e naturais.
Seria útil que novos museus em Portugal, com os olhos no futuro, se assumissem como catalisadores deste processo, e não como meros e provisórios atractores de turistas.
Termas romanas de Vale do Junco, Mação.
*Este texto foi escrito de acordo com o Novo Acordo Ortográfico.