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O contexto da proteção do patrimônio cultural brasileiro


Nesta minha primeira colaboração com a patrimonio.pt pretendo traçar um breve panorama da estruturação da proteção de bens culturais no Brasil com ênfase especial na extremidade do processo de descentralização que ocorreu ao longo do século XX e que desagua no contexto atual vigente. Alguns aspectos aqui destacados comporão minhas futuras contribuições. Me concentrarei sempre na categoria de bens imóveis, sobretudo de edificações e de áreas urbanas em função da minha formação, experiências acadêmicas e técnicas.

O início da proteção oficial do patrimônio cultural brasileiro começa em 1937 com as criações da legislação e do órgão específicos que neste momento se restringiram a proteção de itens com representatividades históricas e artísticas de caráter nacional. Durante três décadas um vasto legado de âmbitos de relevâncias regionais e locais foram desconsiderados. Somente a partir dos anos 1970 os estados entraram em cena nesta questão. Na década seguinte, foi a vez da instância local, das prefeituras. A Constituição de 1988 também conferiu atribuições legais de salvaguarda ao poder legislativo. A partir daí, consolidou-se a política de proteção em vigor que reflete a já citada divisão político-administrativa do país. Esta composição lembra a estratificação de valorização cultural das legislações semelhantes do Reino Unido, no caso inglês das categorias I, II e II* e escocês, A, B e C. Ambas restritas aos casos de edificações (listed buildings).

Percebeu-se também ao longo desse caminho uma mudança de atitude em relação aos julgamentos de méritos que embasam a proteção. Aos tradicionais fatores históricos e artísticos que ditaram regras compositivas por vários séculos (do Renascimento até o início do século XX) incorporaram-se os aspectos científicos, afetivos, econômicos e ambientais nas legislações que até o início da década de 1970 se restringiam ao tombamento (classificação). Superou-se da mesma forma a visão positivista centrada na excepcionalidade para se abranger igualmente as contribuições modestas e contextuais. Alastrou-se, além disso, conforme tendência mundial, o universo de bens culturais que passou a incluir as manifestações imateriais, especialmente o "saber fazer".

Muito se tem discutido sobre a eficácia dos instrumentos de proteção. Numa análise restrita aos ambientes construídos compostos por conjuntos arquitetônicos, mobiliários urbanos, espaços públicos, entre outros itens, defendo que o caso mais efetivo é o da Área de Proteção do Ambiente Cultural/APAC, de acordo com a denominação das legislações análogas do Rio de Janeiro. Em outras situações, na literatura especializada, estas "áreas críticas", conforme a definição da Carta de Petrópolis do ICOMOS Brasil de 1987, são designadas como Conservation Areas no Reino Unido, Secteur Sauvegardé na França, Setores Históricos Tradicionais em Curitiba, Brasil e assim por diante.

As APACs situam-se predominantemente no contexto da segunda onda de descentralização da proteção do patrimônio cultural brasileiro, na esfera municipal, processada a partir dos anos 80 conforme indicado acima. Porém, a consolidação, ampliação e aprimoramento deste instrumento se consagraram no paradigmático Plano Diretor do Rio de Janeiro de 1991. O mérito principal das APACs é a conjugação de critérios de proteção diversificados com parâmetros urbanísticos legais, especialmente os de uso e de ocupação. Esta particularidade, todavia, faz com que a aplicação deste recurso se restrinja aos domínios das autoridades locais por conta das atribuições oficiais delas na definição de políticas urbanas. Na realidade, esta propriedade reforça a importância daqueles que estão mais próximos da vida cotidiana dos bens culturais.

O avanço observado no instrumento de proteção da APAC ainda precisa ser nacionalizado no Brasil. No caso específico do Rio, falta aliar a salvaguarda com a conservação num sentido maior, integrado, que contemple as relações diretas e indiretas dos domínios físicos, sociais e econômicos destas localidades. Carece-se fundamentalmente de correlacionar estes bens culturais com os modelos de desenvolvimento nacional, regional e local. Trazendo-os para o atendimento das demandas sociais atuais sem o comprometimento da autenticidade e da integridade.

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