Os processos de patrimonialização são, de uma maneira geral, iniciativas levadas a cabo por especialistas e eruditos, detentores dos saberes e ciências que legitimam a atribuição do estatuto patrimonial a elementos materiais tais como objetos museológicos, monumentos, paisagens ou conjuntos de edificações. Ser “património” significa possuir determinadas características, como por exemplo ser uma obra-prima da criatividade humana, testemunhar uma época ou cultura, possuir raridade ou autenticidade, enfim, ser detentor de uma excecionalidade que lhe atribui valor inquestionável aos olhos do sujeito patrimonializador.
Até meados dos anos 90 do século passado, a importância atribuída ao papel das populações locais nos processos de classificação e salvaguarda patrimoniais era muito reduzida. Mais recentemente, verificou-se que a preservação dos sítios patrimoniais apenas é viável com a colaboração das populações envolvidas, atendendo a que os bens patrimoniais possuem vários níveis de valor que é necessário considerar. Se tomarmos como exemplo um bem do Património Mundial, facilmente percebemos que possui não só um valor global para toda a humanidade decorrente do estatuto que lhe é atribuído pela UNESCO, mas também um valor nacional por fazer parte da identidade do país onde se situa e um valor local para as populações que, de facto, desfrutam quotidianamente desse património. Assim, a intervenção das populações locais nos processos de patrimonialização tem vindo a ser incentivada, não só como forma de melhor conseguir a conservação do património, mas também como um meio de promover a capacitação e o desenvolvimento sustentável.
A adoção da Convenção da UNESCO para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial veio estabelecer o primado dos detentores do património nos processos de patrimonialização em detrimento dos conhecimentos académicos e eruditos. Sendo um património fundado nos conhecimentos e práticas, não se caracteriza pela autenticidade mas sim pela constante transformação e recriação, não se funda no tempo e na história mas antes na prática recorrente e na transmissão intergeracional, não visa preservar coisas mas salvaguardar saberes e conhecimentos. O olhar do sujeito desvia-se do objeto patrimonializável para se centrar no criador do património, que é chamado a ter um papel ativo em todo o processo.
Como acontece frequentemente com as ideias verdadeiramente renovadoras, não tem sido fácil incutir nos espíritos e nas práticas este paradigma patrimonial inovador, democrático e inclusivo, que coloca em pé de igualdade investigadores, autodidatas, praticantes e restantes partes interessadas nas manifestações do património cultural imaterial. A convenção não aponta qualquer definição de comunidades, grupos ou indivíduos e, apesar de essa reflexão ter vindo a ser realizada dentro e fora do mundo UNESCO e de terem já sido definidos conceitos operacionais que permitem pôr em prática a convenção a nível internacional, é evidente que em território nacional o tema gera ainda dúvidas e controvérsia no dia-a-dia da aplicação da convenção.
Questões como a legitimidade dos inventariantes e o modo de inventariação, o estatuto do folclore face ao património cultural imaterial, ou as formas mais adequadas de divulgação das manifestações intangíveis têm suscitado diferendos entre os diversos intervenientes nos processos de patrimonialização. Todavia, há que ter em mente que o mais importante é, sem dúvida, como declara a convenção, a salvaguarda do património cultural imaterial com «…a mais ampla participação possível das comunidades, dos grupos e, se for o caso, dos indivíduos que criam, mantêm e transmitem tal património…» (Art. 15º). E são estas mesmas comunidades e grupos que, como sublinha Márcia Sant’Ana, sabem qual é o seu património cultural imaterial e como deverá ser preservado e patrimonializado.
Clara Bertrand Cabral
Clara Bertrand Cabral é antropóloga e Mestre em Ciências Antropológicas. Realizou pesquisa nas áreas de etnografia, etnotecnologia, museologia e património. Desde 2005 é responsável pelo sector da Cultura na Comissão Nacional da UNESCO onde, entre outras atividades, acompanha os assuntos relativos às Convenções da UNESCO. Desde 2007 tem vindo a realizar trabalhos de investigação sobre a Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial e a sua aplicação em Portugal e a colaborar com diversos organismos e universidades na sua divulgação. Publicou vários artigos, é membro de diversos comités e conselhos científicos e é autora do livro “Património Cultural Imaterial. Convenção da UNESCO e seus Contextos” (Edições 70, Col. Arte & Comunicação, 2011).
Recensão Crítica por Elsa Peralta na revista MIDAS: http://midas.revues.org/295
Contacto: clara.cabral@mne.pt