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Em tempos de contra ciclo económico o património empobrece a par de todos nós


O desmonte premeditado do património com estima pública (parte II)

A dimensão cultural, social, económica e política do património, deixou-se também contaminar por um fundamentalismo irredutível de defesa do património dos que aparentemente o mais protegiam, uma espécie de “amor cego”, não lendo com sentido crítico e de oportunidade, os sinais mais explícitos de uma má estratégia, de batalhas que se percepcionavam como perdidas. Nada fizeram para evitar o desmembramento de instituições indispensáveis e continuaram orgulhosamente a falar para o seu imenso ego e de mais uns tantos solitários, zangados com tudo e com todos, tornando-se nos “indígenas do património”.

Neste afã egoísta de uma elite empedernida nas suas exclusivas palestras, seguiu-se a desmobilização dos cidadãos e com ela o desaparecimento de um fórum aberto de discussão e de sugestão para progredirmos com uma estratégia de defesa, divulgação e usufruto económico, cultural e social do património arquitectónico, num natural interesse colectivo onde todos, principalmente os que habitam esse património, têm direito a usufruir de condições de conforto e actualização do espaço vivencial.

Queremos no entanto continuar a ser optimistas e acreditar que apesar do actual contra ciclo económico negativo em que nos encontramos, e não enquanto cúmplice, do desnorte dos actuais actores da cultura em geral e do património em particular. Não devemos desistir de exigir uma política de património, enquanto país com história com cultura de continuidade, que as anteriores e actuais gerações se mobilizem em associação com as suas instituições.

Verificamos que estamos de novo a vender sem critério cultural, o último património que resta após as auspiciosas mudanças ocorridas sobre a sociedade conservadora e restritiva nos direitos dos cidadãos do século XIX, mas também dos saques ocorridos na sua transição, das más políticas ou do oportunismo premeditado ocorrido, com especial incidência nas consequências da expulsão das ordens religiosas e a consequente alienação de bens, que deveriam no mínimo, face ao confisco terem permanecido públicos. Este tempo histórico de mudança do regime da monarquia constitucional para a república já em pleno século XX, parece estar a repetir-se, por via das cegas hastas públicas, onde se vende património cultural, como “imóveis” comuns, desde conventos, a escolas ou postos de fronteira, ou um sem número de “imóveis” com carga histórica incontornável e de valor patrimonial local e ou nacional, são vendidos à peça para retalho...

A actual crise económica e também cultural tornou-se no momento apropriado, para de forma violenta se quebrarem cadeias de relações estáveis do próprio Estado, como se tivéssemos mudado de regime, só possível por as termos desvalorizado/descredibilizado através de anos de falta de estratégia global, em termos de política de património. Esta realidade terá surgido em boa parte nas últimas décadas a partir do clima de “guerrilha surda”, entre “fundamentalistas” de defesa do património, instalados em alguns organismos do poder central e autárquico e os cidadãos proprietários dos imóveis que viram os seus projectos sistematicamente chumbados ou “estacionados”, numa prateleira anos, décadas a fio. São incontáveis os insucessos de inúmeros projectos de reabilitação de edifícios classificados ou em áreas de núcleos históricos, elaborados por qualificados arquitectos, enquanto que nas mesmas áreas se foram construindo e ou alterando outros edifícios clandestinamente, com a permissão de perversos sistemas instalados. Regulamentação rígida, desajustada da realidade desde a sua formulação e/ou interpretações abusivas da mesma, algumas mergulhadas em princípios ideológico-políticos, (partidários e por isso censuráveis numa perspectiva de acção exclusivamente técnica), terão concorrido e eventualmente em alguns casos, continuarão a concorrer para a morte anunciada do património arquitectónico que supostamente se deveria preservar. Anos, décadas de abandono por parte de proprietários, entidades públicas e sobretudo privadas são a consequência do desastre legislativo das nossas cidades históricas. Nalguns casos extremos, são os próprios proprietários que terão induzido o aceleramento da degradação desse património em desespero de se verem livre dele, pelos avultados prejuízos, acumulados numa impiedosa teia de valor especulativo dos solos urbanos e empréstimos bancários, em cumplicidade legal com as mais-valias a pagar às autarquias, sua principal fonte de rendimento.

O património arquitectónico não é assim e tão só, a “estima” abstracta, mas toda uma complexa rede de interesses de onde se deverá destacar a sociedade, integradora dos interesses legítimos dos cidadãos, onde se incluem os proprietários, os usufrutuários do património pelo direito à coisa privada, para usufruto material, cultural e espiritual enquadrado no sentido público, ou seja, sem o agredir ética e esteticamente. Arqueólogo, arquitecto, historiador, engenheiro, ou outro técnico com poder de “parecer armado”, não se pode refugiar, acantilar num qualquer organismo público, contra tudo e contra todos, não medindo todas as consequências do seu ditatorial acto de censura moralista, voluntário ou involuntário, sem procurar estabelecer um diálogo, uma “negociação” com todas as partes envolvidas e julgar ter o exclusivo direito de dispor do tempo de vida de uma pessoa, de uma família, de um grupo de cidadãos, de uma cidade, anos, décadas a fio. Tempo que nunca se recupera e que desespera, que revolta qualquer pessoa que se sente defraudada pelas suas instituições, que o não representam como seria suposto.

O tempo que passou sobre a era “moderna” de defesa do património faliu por, principalmente não se terem encontrado plataformas de discussão onde estes assuntos e estes protagonistas se tivessem procurado entender, ao invés de se entrincheirarem em redutos sem saída. Aparentemente, e reportando-nos ao património “corrente” privado, uma das principais causas terá sido devido à blindagem de pareceres técnicos, contra cidadãos à partida considerados inimigos do património, como também se verifica que, no caso do património monumental, a estratégia de extinção de organismos como a D.G.E.M.N. e o IPPAR, foi desastrosa, trazendo maior degradação por via do desaparecimento das entidades de referência em termos de metodologias de conservação, reabilitação e ampliação do património arquitectónico e que efectivamente actuavam no terreno. Por antecipação, estas entidades, nomeadamente a D.G.E.M.N ao longo de 75 anos criou mecanismos de antevisão de modo a salvaguardar no todo a integridade de monumentos e edifícios classificados em risco, actuando todos os anos em todo o país, de forma transversal ao valor histórico, tipológico, construtivo, decorativo, entre outros. Esta realidade permitiu a partilha de experiências, criando práticas correntes que asseguravam de forma regular a transmissão de conhecimentos técnicos ancestrais de conservação e restauro, atingindo inclusivamente por via indirecta ao explicitar materiais, tecnologias e procedimentos adequados a aplicar mesmo no património anónimo, precisamente aquele que perfaz a moldura das nossas aldeias, vilas e cidades com património monumental.

Não se entende como se estilhaçou estes organismos, pulverizando os seus qualificados efectivos para diversas entidades sem correlação, para a mobilidade e ou reformas antecipadas, como num desmonte premeditado de um edifício da nossa estima que no silêncio e pasmo da sociedade sumiu um dia do nosso universo visual sem deixar rasto.

Importará salientar que nada nos move contra ninguém em particular, ou qualquer instituição. Antes nos consideramos parte integrante deste necessariamente imperfeito sistema, movendo-nos apenas a estima e a admiração que temos por todos os que, no passado e no presente, procuram de forma explícita, cumprir a sua função institucional com elevado sentido ético e desempenho técnico, servindo a causa pública dentro e fora das instituições, enquanto cidadãos comprometidos com a cidadania.

Imagens actuais do Santuário de Nossa Senhora do Cabo Espichel

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