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Nicha Alvim (1939-2012)


No Museu de Arte Antiga eu não conto os quadros às crianças, procuro levá-las a admirar e interrogar as obras de Arte. (...) Lembro-me de uma vez, perante uma pintura muito barroca que representava alguns frades em oração no meio do arvoredo, ter pedido ao grupo de miúdos de seis anos um titulo para aquela obra e um deles chamou-lhe A Floresta do Desespero. (http://www.circuloleitores.pt/entrevistas/ler.php?id=62)

A crónica deste mês tem um formato um pouco diferente do que seria de esperar.

A Ana Maria Cortes, nom de plume (et de guerre!) Nicha Alvim, morreu no dia 24 de Dezembro 2012. Não obstante anunciada, a sua morte apanhou de surpresa aqueles que a conhecem – e o sentimento de injustiça, de trabalho inacabado, mantém-se, para quem, como eu, a tinha como mentora.

A Nicha entrou nos Serviço de Educação do Museu Nacional de Arte Antiga aos 19 anos, durante a década de 1950. Sob o impulso do Dr. João Couto e da pintora Madalena Cabral, o Museu Nacional de Arte Antiga, influenciado pelas práticas britânica e americana, liderava na altura o ainda pequeno corpo de museus portugueses na introdução da missão educativa na prática museológica nacional.

Para o MNAA, isto traduzia-se no que se tornou prática corrente na maioria dos museus de arte no mundo – uma programação cultural paralela às exposições permanentes e temporárias, com filmes, cursos, palestras, dirigidos a públicos diversos. Hoje considerada algo normal, tradicional até, era na altura um conceito inovador, que criava pontes de ligação, de entendimento informal, entre a arte – a sua história e a sua criação – e o espaço que a exibia. Sem nunca sacrificar a necessidade de conhecer profundamente, cientificamente, academicamente a sua colecção, o MNAA reconhecia na altura a importância de orientar a sua razão de existir para públicos diversos, com diversas necessidades e expectativas.

A iniciativa que melhor representava estes valores foi a reconversão do edifício adjacente ao museu num espaço inteiramente dedicado à prática artística informal. Quem lá entrasse, era convidado a ficar, por dez minutos, uma hora, ou um dia, e a criar um desenho, uma escultura, uma tapeçaria, ou uma peça de cerâmica. A interacção com a colecção do MNAA era indirecta, porém real, com as idas ao museu desenvolvendo as capacidades de observação e de espírito crítico dos participantes, e a informação contextual necessária. No seu verdadeiro elemento, a Nicha, ceramista de coração, aliava o saber fazer e o saber ensinar, com o saber histórico, e, o mais importante, – com o saber deixar o outro criar a partir das experiências que lhe fossem proporcionadas.

Mudam-se os tempos e mudam-se as vontades. O edifício foi demolido, e as actividades dedicadas a criação (e criatividade) artística definharam, até sobreviverem apenas os Primeiros Domingos do Mês no início da década de 2000. A perda de ligação entre o museu e a prática artística foi lamentada pela Nicha até 2006, ano em que discretamente se reformou. De facto, a reorientação do MNAA de instituição educativa para instituição académica, tornou por vezes o Museu num laboratório experimental de ideias, que em mal reflectia as preocupações e os desejos de um público com pouco tempo, e pouca inclinação, para questões complexas exprimidas numa linguagem inacessível.

Mantendo a sua orientação para os diferentes públicos do MNAA, a Nicha coordenou um conjunto de roteiros para famílias com diferentes temas, que permitiam a exploração da colecção em tempo real. Estes guias foram o meu ponto de entrada na colecção, quando, aos 26 anos, mantive uma breve colaboração com o MNAA – e neles me inspirei quando coordenei os guias para famílias dos Museus Municipais de Cascais.

O seu contributo culminou com a criação do Roteirinho, um guia do MNAA destinado às famílias com crianças, e aos adultos que queiram abordar a colecção de um ponto de vista que não o formalmente académico. Ilustrado por Madalena Mattoso, a primeira edição do guia esgotou rapidamente. A segunda edição reflecte as reinstalações do espaço expositivo até 2011. Paralelamente, a Nicha escreveu uma série de livros infantis sobre uma bruxa, a Cornélia, que combina a inteligência, o sentido prático e de mischief da sua criadora, e em que o património cultural e natural português serve como pano de fundo.

A Nicha viveu uma vida grande e luminosa. Fez parte dos grandes que tornaram, em seu tempo, o Museu Nacional de Arte Antiga, no líder da transformação do museu de arte em instituição educativa. Enquanto profissional de museus, cumpriu o seu papel, pensando os públicos, inovando, criando, e passando a mensagem de que é possível conjugar a preservação da memória - o passado - com as questões do quotidiano, o encorajamento à criatividade e à imaginação - o presente.

No entanto, a Nicha seria a primeira a dizer que lamentar o passado serve de pouco. Perante portas fechadas, encontrou as janelas abertas. Quando a conheci, a Nicha estava a três anos de se reformar, e matutava ainda sobre como tornar a visita escolar (o pão nosso de cada dia das estatísticas de visitantes) motivadora de regresso. Optimista e com graça, sentia que ‘os alunos vêm à visita como quem vai à vacina, e nunca mais cá põem os pés.’

Na década de 1950, inovar significou desenvolver Serviços de Educação, criar programação paralela regular, informal e de qualidade; desenvolver redes de trabalho (entretanto perdidas); encorajar a formação profissional contínua e, no caso das colecções artísticas, promover a criatividade e a prática artística a par da aquisição de conhecimentos. A estes conceitos, a inovação de hoje alia o conhecimento dos novos meios de comunicação dentro e fora das salas de exposição; a existência do museu num espaço concorrente com actividades de lazer gratuitas e/ou ao ar livre; e, no que respeita a públicos, conhecer as suas realidades; e entender a condição de insatisfação permanente do nosso tempo, que nos tende a definir.

O nosso papel enquanto profissionais de museus de hoje, não é chorar uma qualquer idade de ouro. É-o abrir as portas na certeza de que o conteúdo que expomos; a linguagem que utilizamos; o tom que escolhemos; os suportes e meios em que comunicamos; a identidade que proclamamos, estão na melhor sintonia com os públicos que nos procuram.

A perda da minha amiga deixa-me infeliz. Se as memórias que tenho me consolam, os caminhos que me apontou, pelas palavras e pelos actos, são um combustível para continuar a pensar como melhor servir os públicos, como melhor incentivar o contacto com os objectos, como melhor conjugar os valores contemporâneos com as questões de sempre.

Agradecimentos: Doutora Maria de Lourdes Riobom, Directora do Serviço de Educação do MNAA

Art room, Ulster Museum. Transformar espaço expositivo para uma área de conhecimento e pratica artística é uma escolha que nem todos os museus estão dispostos a fazer.

Ana Maria Cortes, 1939 – 2012

History room, Ulster Museum: um espaço de barulho, conhecimento, partilha inter-geracional em que a aprendizagem é interactiva, divertida, e espera-se, inesquecível.

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